quarta-feira, 18 de novembro de 2009

A Última Tentação De Cristo


Épico intimista de Scorsese é uma peça histórica e cinematográfica de grande qualidade
Por: Rodrigo Carreiro

Todo e qualquer filme que evoca direta ou indiretamente a figura de Jesus Cristo tem sido objeto de polêmica. Quase sempre essas confusões são criadas por grupos conservadores, que alimentam uma visão de Cristo como um ser divino, livre de pecados, quase como o próprio Deus. Uma imagem intocável, que não pode ser contrariada. Vista dessa forma, a feroz oposição que parte da Igreja Católica fez a “A Última Tentação de Cristo” (The Last Temptation of Christ, EUA, 1988), de Martin Scorsese, parece lógica e compreensível.
Esse dogma, contudo, não é apenas injusto diante do belo longa-metragem de Scorsese. Ele também vai de encontro a um dos ensinamentos centrais pregados por padres e bispos: a natureza divina e humana, ao mesmo tempo, de Cristo. A escolha de Scorsese – ele próprio um cristão devoto e ex-seminarista – foi enfatizar o lado humano de Jesus. Dessa forma, o diretor norte-americano andou na contramão da representação mais comum de Cristo no cinema. Nos filmes, o filho do Deus dos católicos é visto sob uma aura divina tão grande que, até meados dos anos 1960, os cineastas nem tinham coragem de mostrar o rosto do personagem.
Na verdade, a representação antiga de Cristo recusa o lado humano de Jesus. É exatamente essa última faceta que Scorsese procura retratar, despertando com isso a fúria dos conservadores que lêem a Bíblia de modo enviesado. Assim, o Jesus de Scorsese (Willem Dafoe, num desempenho excepcional) é visto como um homem que tem poderes divinos, mas também medo, dúvida e desejo. Carpinteiro que (ironicamente) constrói cruzes para os romanos, ele é um homem que ouve vozes misteriosas, mas não tem certeza de que é Deus que lhe fala. Mesmo quando aceita a missão divina, teme o sofrimento a que está destinado e pensa em voltar atrás. As hesitações são tão grandes que Cristo sofre dores de cabeça atrozes, como resultado da tensão extrema a que vive submetido.
Dessa forma, Scorsese (auxiliado pelo fiel escudeiro e grande roteirista Paul Schrader) constrói um personagem contraditório, que vive sob o peso de um destino que teme abraçar. Scorsese imagina o lado humano de Cristo, mas de forma respeitosa; ele sente paixão, tem ereções, fica furioso a ponto de perder a cabeça, e vive duvidando de si mesmo. No caminho percorrido por Jesus, o cineasta também aproveita para dar uma interpretação diferente a outros personagens bíblicos. Judas (Harvey Keitel), por exemplo, seria uma espécie de terrorista, defensor da libertação de Israel por meio da violência, e teria traído Jesus através de uma manipulação conduzida pelo próprio Cristo. Já Paulo (Harry Dean Stanton) é mostrado como uma espécie de diplomata do Cristianismo, alguém capaz de mentir sobre qualquer assunto, até mesmo sobre o próprio Cristo, em benefício do credo que defende, numa alegoria clara aos caminhos tortuosos que a Igreja Católica percorreu no passado.
Tudo isso pode ter contribuído para a reação negativa dos católicos ao filme, mas o ponto nevrálgico da polêmica é a alucinação que Jesus tem na cruz. Diante do medo da morte, ele teria sido convencido a usar seus poderes divinos, descer da cruz de forma invisível e retomar uma vida normal e anônima. Nessa alucinação, ele se casa, tem filhos e envelhece como um homem comum. Scorsese faz questão de deixar claro que essa é uma interpretação particular e ficcional dos evangelhos, mas mesmo assim muitos líderes religiosos destilaram veneno contra o filme.
Tremenda injustiça. “A Última Tentação de Cristo” é pura poesia cinematográfica. É intimista sem ser tímido e tem belos diálogos. Sofre com uma mise-en-scéne um pouco teatral em excesso, e algumas soluções narrativas para os extensos monólogos interiores que a narrativa da vida de Cristo contém também soas artificiais, mas são problemas menores. De forma geral, trabalha muito melhor as pulsões individuais dos personagens do que vemos normalmente nesse tipo de longa-metragem. Atente especialmente para as cenas em que Jesus fica recolhido no deserto durante 40 dias, para meditar. São cenas plasticamente lindas e, do
ponto de vista narrativos, ágeis e envolventes.
Como curiosidade, vale apontar que a alucinação que dá o título ao filme não saiu da cabeça de Scorsese e nem do escritor grego Nikos Kazantizakis, que escreveu o livro homônimo, base da
adaptação promovida pelo cineasta. A crença de que Jesus Cristo escapou da cruz, casou e viveu até a velhice é a pedra fundamental do islamismo e foi difundida por Maomé, que via a si próprio como um profeta enviado à Terra para reparar o erro de Jesus. Sob certo aspecto, portanto, “A Última Tentação de Cristo” é não apenas um belo filme, mas uma peça de ficção histórica de grande qualidade.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/ultima-tentacao-de-cristo-a/

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