terça-feira, 24 de novembro de 2009

Lucia E O Sexo


Filme do cineasta basco Julio Medem traçanarrativa labiríntica e dá banho de luz em obra criativa e original
Por: Rodrigo Carreiro

Acasos e coincidências são a pedra de toque do trabalho do cineasta basco Julio Medem. Essa era a característica principal de “Os Amantes do Círculo Polar”, o elogiado trabalho que o projetou no Brasil. “Lucía e o Sexo” (Lucía e el Sexo, França/Espanha, 2001) deve ser visto como um prolongamento do longa anterior: também nele as relações humanas são regidas por um elemento caótico, aleatório, que afasta e aproxima as pessoas e as deixa impotentes, sem possibilidades de comandar os próprios destinos. Para completar, Medem capricha no clima e nas locações românticas. Gera, assim, um filme irresistível para amantes do cinema, da vida e, por que não dizer, do(a) parceiro(a).
O mais interessante, para quem não sabe, é que “Lucía e o Sexo” começou realmente como um projeto ligado a “Os Amantes do Círculo Polar”. Segundo Medem, a personagem feminina do longa anterior, Ana, foi o ponto de partida do roteiro. O cineasta decidiu tentar amenizar a tragédia que envolvia a garota no primeiro filme, escrevendo para ela um texto, digamos, mais luminosos. (Lucía e Ana, portanto, embora tenham nomes diferentes e sejam interpretados por atrizes distintas, são a mesma pessoa). E, bem, eis que luminoso é o adjetivo exato que define a obra, tanto metafórica quanto literalmente. Afinal, “Lucía e o Sexo” surpreende também pelo visual, um verdadeiro banho de luz que realça o espetacular cenário da maior parte da trama, uma pequena ilha no litoral mediterrâneo da Espanha.
Antes de falar da bela fotografia digital, porém, é necessário destacar a habilidade fora do comum de Medem para lidar com narrativas circulares, sem respeitar uma estrutura cronológica linear. Presente e passado são narrados sem que se recorra a distinções estéticas (o uso do preto e branco ou pelo menos legendas que informem a data), o que impossibilita o espectador de perceber instantaneamente os refluxos cronológicos. A platéia só percebe que vários tempos se misturam na história com o decorrer da projeção. Mas, acredite, isso nunca resulta em seqüências incompreensíveis, o que comprova o domínio que o cineasta tem do enredo.
“Lucía e o Sexo” quebra outra regra do cinema comercial quando prescinde de prólogos que introduzam ou expliquem personagens. Eles surgem naturalmente e tratam de seduzir o espectador através das peculiaridades e das histórias surpreendentes que cada um tem para contar. Nesse sentido, o filme parece uma coletânea de pequenos contos que vão se entrelaçando a medida em que o espectador passa a conhecer detalhes de cada história. É interessante perceber que, no início da projeção, pouco ou nada sabemos sobre Lucía (Paz Vega), Lorenzo (Tristán Ulloa), Elena (Najwa Nimri) e Carlos (Daniel Freire). Enquanto o espectador vai descobrindo as relações entre eles, acabamos atirados numa posição de onipresença; passamos a ter uma visão geral da malha de relações humanas que envolve os personagens e, subitamente, estabelecemos conexões que somente aos poucos eles vão descobrir.
Essa situação, obviamente, força a platéia a tomar posição, até mesmo a julgar, as decisões e comportamentos de cada ser humano em “Lucía e o Sexo”. Esse é o segredo do filme, aliás: todos são pessoas impressas em celulóide, seres multidimensionais como homens de carne e osso, não simples personagens. Essa característica anda um tanto rara em filmes contemporâneos. Bem como o espetáculo de atuações que nos oferece o elenco, em especial as mulheres: Najwa repete a excelência da obra anterior de Julio Medem, e Paz Vega encarna à perfeição a luz que o personagem (o nome, Lucía, obviamente não é uma coincidência) exige. As fortes cenas de sexo quase explícito comprovam a naturalidade da garota no papel.
A fotografia digital é outro aspecto de encher os olhos. Medem garante que optou por filmar com essa tecnologia porque queria obter uma projeção quase transparente, sem granulação, especialmente nas cenas que se passam na ilha, cuja luz inunda a tela e esmaece as cores. Infelizmente, a
projeção digital não é uma realidade no Brasil, e a transposição para a película acaba tirando um pouco da profundidade das imagens. Mas esse problema é logo esquecido pelo uso maravilhoso da poesia que emana das histórias de Lorenzo, escritor e prisioneiro do acaso (e, afinal, qual dos personagens não o é?), que usa os livros que escreve como válvula de escape para transformar a tragédia da vida pessoal em beleza.
Para completar, há ainda a belíssima metáfora da ilha mediterrânea, onde logicamente a ação vai desembocar. A base da ilha é toda perfurada, como um queijo suíço (e isso explica as imagens submarinas que abrem o filme). Esses buracos são usados por Lorenzo, num plano simbólico (e também por Medem, na dimensão do roteiro), para fazer a narrativa tornar-se labiríntica sem perder o sentido. Quando chega o final, e o quebra-cabeças sutilmente montado se encaixa tão perfeitamente, o filme acaba perdendo um pouco a magia. Sabemos que a vida não é bem assim, mas aí é tarde: todo o resto do filme já te seduziu.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/lucia-e-o-sexo/

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