
Martin Scorsese entrega cinebiografia grandiosa e coerente sobre milionário excêntrico
Por: Rodrigo Carreiro
Quando Martin Scorsese anunciou a intenção de dirigir a cinebiografia do milionário excêntrico Howard Hughes, uma personalidade lendária de Hollywood, muita gente estranhou. Na superfície, a vida de Hughes parece não ter nenhuma relação com as temáticas mais recorrentes da obra do cineasta norte-americano: a vida de personagens que vivem à margem da sociedade (“Touro Indomável”, “Taxi Driver”) e o submundo da máfia (“Os Bons Companheiros”, “Cassino”). Uma análise mais acurada de “O Aviador” (The Aviator, EUA, 2004), porém, mostra que o filme é um legítimo representante da obra de Scorsese, e é uma marca honesta na carreira de um diretor que já tem lugar reservado entre os mais importantes homens de Cinema de todos os tempos.
De fato, a vida de Howard Hughes tem muita semelhança com as trajetórias de Travis Bickle e Jake La Motta, os dois personagens mais importantes de Scorsese, ambos imortalizados por interpretações antológicas de Robert De Niro. Hughes também era, à sua maneira, um marginal, um homem que não era levado a sério nas rodas que freqüentava. O retrato que Scorsese pinta desse homem é complexo, humano, cheio de altos e baixos. Hughes era um sujeito fascinante: impetuoso, movido a paixões instantâneas, um homem que não tinha medo de tomar decisões empresarialmente arriscadas apenas por simpatizar com um projeto.
Se fosse pobre, Howard Hughes jamais seria levado a sério. Como herdeiro da fortuna de um bilionário texano do ramo do petróleo, contudo, ele podia se dar ao luxo de passar dois anos e meio sem trabalhar, metendo-se a diretor de cinema. Pior: fazendo um único filme, ao custo de milhares de dólares por dia, apenas porque queria esperar pelas nuvens certas para filmar uma seqüência de ataques aéreos. Hughes era fascinado por aviação. Ele voava sempre que possível, dava pitaco nos projetos aerodinâmicos dos aviões que construía e não hesitou em comprar a TWA, uma das maiores empresas do ramo, quando a empresa ficou em dificuldades.
Há uma brilhante cena, logo no início de “O Aviador”, que mostra o quanto Hughes era obstinado e, ao mesmo tempo, ridicularizado por gente do mesmo tope. Em um restaurante da moda, ele aborda Louis B. Mayer (Harridon Held), chefão do estúdio MGM, para pedir duas câmeras emprestadas, a fim de completar as filmagens de uma cena importante para seu épico “Anjos do Inferno”. Ciente das excentricidades do então rapaz, o executivo o recebe, intrigado, com um leve sorriso. Eles travam o seguinte diálogo:
- Preciso de algumas câmeras. Duas, para ser mais exato. Já comprei todas as câmeras que pude encontrar, mas precisamos de mais duas. Desesperadamante. Acha que a MGM pode me ajudar?- Não temos o hábito de ajudar a competição. Quantas câmeras você tem?- Vinte e quatro.
Mayer olha de lado, incrédulo.
- Tem 24 câmeras e precisa de mais duas? Não dá para rodar a cena com 24?- Não, senhor.
O executivo sorri, zombeteiro.
- Vou te dar um conselho. Pegue seu dinheiro do petróleo e ponha no banco. Se continuar filmando assim, ninguém vai querer distribuí-lo. Ninguém irá querer assistir ao filme. E seu dinheiro do petróleo vai acabar. Ele ironiza: – Bem-vindo a Hollywood.- Vou me lembrar disto, Sr. Mayer.
O espectador encontra tudo nesse diálogo: a ironia fina de um profissional que pensa estar lidando com um amador, a surda e feroz competição entre os estúdios de Hollywood, a arrogância do aprendiz diante da zombaria do mestre. O diálogo é um excelente exemplo do bom roteiro de John Logan. O texto, filmado pelo diretor certo, ergue uma biografia quase perfeita de um titã, um homem que, mesmo nadando em dinheiro, foi sistematicamente rejeitado pelos colegas de altas rodas sociais, porque ousou peitar o establishment durante toda a sua vida. Ele sofreu as compreensíveis punições sociais por causa disso, como a segunda metade do filme, dominada pela briga com o empresário rival Juan Trippe (Alec Baldwin), dono da Pan Am, deixa claro.
Leonardo DiCaprio encarna o protagonista de modo impecável, destilando charme e energia juvenis e obtendo um registro de voz mais agudo do que o normal, para salientar a aparente fragilidade do jovem milionário. DiCaprio é apenas uma das pontas de um elenco tão farto quanto homogêneo em sua excelência. No meio de tantas feras, como John C. Reilly, Ian Holm e Jude Law (que faz uma ponta hilariante como o ator Errol Flynn), duas atrizes que interpretam namoradas de Hughes se destacam de modo oposto. A australiana Cate Blanchett, no papel de Katherine Hepburn, mostra a mistura exata de classe e fina inteligência, emolduradas por um sotaque de alta sociedade impecável. Já Kate Beckinsale, como Ava Gardner, é o contraponto negativo, o elo mais fraco do elenco, sem expressão e sem força. Acaba ganhando menos espaço na montagem por causa disso.
A montagem, costumeiramente um ponto forte nos filmes de Scorsese, aqui escorrega em alguns momentos. Obrigada a comprimir muitas cenas em 2h50 de filme, Thelma Schoonmaker acelera demais algumas seqüências, sobretudo na primeira metade do filme, que concentra a narrativa nas aventuras de Howard dentro de Hollywood. Mesmo assim, há uma boa quantidade de grandes cenas, como a linda passagem em que dezenas de aviões monomotores levantam vôo com o céu nublado, para a gloriosa filmagem de “Anjos do Inferno”. Outro momento brilhante, uma das mais deliciosas cenas do filme, é o passeio noturno de Hughes e Hepburn sobre Los Angeles, de avião. Ali, o rapaz seduz a altiva atriz com suas travessuras e, ao mesmo tempo, dá a primeira pista sobre a neurose obsessivo-compulsiva que iria lhe transformar em magnata recluso na meia-idade, muitos anos depois.
Como de hábito, Scorsese promove uma reconstituição de época minuciosa e impecável, com a ajuda de colaboradores fiéis, como o cenógrafo Dante Ferretti. A Hollywood dos anos 1930 e 1940 ganha, então, um retrato belíssimo. A exigência de Scorsese para com os detalhes é tão grande que ele exigiu do fotógrafo Robert Richardson que cada período aparecesse, no filme, com a textura e o uso de cores que remetessem à tecnologia de captação de imagens da época. Assim, as imagens do início de “O Aviador” possuem um tratamento de cores mais precário, típico do Technicolor. À medida que o longa vai avançando no tempo, as cores vão se tornando mais naturalistas, mais fiéis à realidade.
Para completar, Scorsese também demonstra que é um cineasta completo ao filmar a seqüência da queda de um avião, repleta de efeitos especiais gerados por computador, com impressionante grau de realismo. Tudo bem, “O Aviador” pode não ter o sabor de novidade de “Taxi Driver”, o impacto inigualável de “Touro Indomável” e nem a sofisticação narrativa de “Os Bons Companheiros”. Mas apresenta coerência com a temática que domina a obra de Scorsese e tem muito mais qualidades do que defeitos.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/aviador-o/
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