quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Homem De Ferro

História é convencional, mas não subestima a inteligência do público, possui bons atores, subtexto político, humor e ação realista
Por: Rodrigo Carreiro

As adaptações cinematográficas de revistas em quadrinhos são, neste princípio de século XXI, a galinha dos ovos de ouro da indústria do entretenimento nos Estados Unidos. Enquanto o cinema sofre com a concorrência de games cada vez mais realistas e com a pirataria, fatores que roubam o público das salas de projeção, heróis e vilões oriundos dos gibis continuam mexendo com as emoções de milhões de fãs. Não foi por outro motivo que a Marvel, editora que detém os direitos da maior galeria de personagens do gênero, decidiu dar um ambicioso passo adiante e se lançar como estúdio de cinema. A decisão significou arcar sozinha com os custos milionários dos longas-metragens com peças do seu elenco envolvidas, mas por outro lado possibilitou à empresa colher fatias bem mais largas dos lucros extraordinários amealhados por estas produções.
“Homem de Ferro” (Iron Man, EUA, 2008) marca a entrada triunfal da Marvel no território até então dominado por Sony (Homem-Aranha,
Motoqueiro Fantasma), Fox (Quarteto Fantástico, X-Men) e Universal (Hulk) – desta vez, a Paramount cuida da distribuição, mas só isso. A escolha do personagem para o passo adiante da empresa era uma escolha lógica. Apesar de menos conhecido pelo público leigo, o gigante de armadura vermelha e amarela, criado em 1963, possui séquito fiel de admiradores e se encaixa à perfeição no perfil dos heróis de ação mais amados da atualidade. O empresário Tony Stark é um homem imperfeito, que equilibra qualidades e defeitos. É gênio da tecnologia, patriota e honesto, mas leva um estilo de vida excêntrico e irresponsável, regado a bebidas, mulheres e declarações tão francas quanto polêmicas.
Seguidores de filmes de ação com super-heróis mascarados vão notar, sem dúvida, a semelhança com o Batman, herói-ícone da DC Comics, maior rival da Marvel. Esta semelhança não é
mera coincidência. Criado por Stan Lee, Tony Stark é mesmo uma variação do Homem-Morcego de Bob Kane. Também nasceu em berço de ouro e parece, aos olhos do público, um playboy perdulário, embora seja muito mais altruísta do que se pensa. Além disso, a franquia do Batman (rejuvenescida por Christopher Nolan em 2005, após quatro longas-metragens anteriores) foi influência decisiva no Homem de Ferro moldado pelo diretor Jon Favreau, com a ajuda de quatro roteiristas experientes. O realismo de “Batman Begins” reaparece com uma roupagem mais bem-humorada e luminosa.
Aqui, o herói não parece imortal e invencível. Ele é desajeitado no treinamento para operar o traje especial e fica perto da morte várias vezes. O tratamento dado à tecnologia também finca um pé firme na realidade, sem os disparates inconseqüentes de bobagens como “Quarteto Fantástico”. As armas de guerra e traquitanas tecnológicas criadas por Stark poderiam, tranqüilamente, existir no lado de cá da tela. A outra influência importante na criação de “Homem de Ferro” vem da mais bem-sucedida cria da Marvel nos cinemas, o Homem-Aranha. O primeiro filme da franquia do aracnídeo, criado por Sam Raimi em 2002, não é um paradigma do gênero por acaso. Depois dele, virtualmente todos os filmes com personagens de quadrinhos (inclusive o já citado “Batman Begins”) se sentiram na obrigação de investir, com minúcias, no nascimento do herói, decicando-se com afinco à composição de um personagem consistente.
Não há dúvidas de que “Homem de Ferro” é um filme construído sobre uma fórmulas. O esqueleto narrativo da trama segue, passo a passo, o mesmo caminho escolhido por Raimi. Não há qualquer inovação. A primeira metade esmera-se em mostrar a origem do Homem de Ferro, inserindo o personagem dentro de um contexto (inclusive político, com referências à ação norte-americana no Oriente Médio, uma novidade dentro do gênero) e criando, em torno dele, uma galeria de indivíduos com quem vai estabelecer relações mais ou menos amistosas. Na segunda metade, concentra-se em apresentar o vilão (Jeff Bridges) e colocar ambos em rota de colisão, além de criar um interesse amoroso (Gwyneth Paltrow). Jon Favreau faz isso com competência, embora sem os toques autorais de Raimi e Nolan, cineastas superiores no quesito visual e na complexidade com que tratam os personagens. O diretor pontua a trama com seqüências de ação vibrantes (o clímax parece muito com “Transformers”, de 2007), e usa o humor como elemento de empatia entre protagonista e audiência.
Neste último ponto, Favreau tem a ajuda inestimável de um dos pontos fortes de “Homem de Ferro”: o ator Robert Downey Jr. A escalação do astro no papel do personagem-título foi um lance de arrojo do cineasta, e acabou se mostrando o maior acerto dele. Downey Jr parece inteiramente à vontade no papel. Sua expressão cínica, bem como a capacidade de disparar diálogos rápidos e cheios de segundas intenções com naturalidade, acentua ainda mais o humor naturalmente presente no roteiro (“Tecnicamente houve um conflito de agenda com a capa de maio, mas sorte que em dezembro a capa eram gêmeas”, responde ela, divertido, à pergunta sobre o boato de que havia levado para a cama todas as últimas doze garotas da capa de certa revista masculina).
Ajuda muito, também, que a persona pública de Robert Downey Jr reforce a personalidade criada pelos roteiristas para o homem por dentro da armadura. Como se sabe, o ator viveu um drama pessoal (e muito público) durante nove anos, desde 1996. Alcoólatra, viciado em crack e cocaína, passou duas longas temporadas na prisão e andou desempregado por muito tempo. Foi dado como caso perdido por muita gente, mesmo por aqueles que nunca duvidaram de seu talento inegável. Ele já vinha ensaiando uma volta por cima (em filmes elogiados como “O Homem Duplo” e “Zodíaco”), e aqui se transforma em Tony Stark de corpo e alma. O filme não aborda diretamente, por exemplo, o alcoolismo do personagem, mas o passado do ator se alia às várias cenas em que o vemos de copo na mão para lembrar o público que este é um assunto a ser explorado em filmes futuros da franquia.
Como de hábito nos filmes de super-heróis, “Homem de Ferro” foi planejado como uma trilogia. Pensando nisso, Favreau tratou de utilizar uma estratégia já aprovada em séries como “X-Men” e “Homem-Aranha”, tratrando de espalhar pontas soltas e personagens secundários que, no futuro, podem se tornar aliados ou antagonistas poderosos, caso do militar boa-praça interpretado por Terrence Howard. Numa prova de ambição e audácia da Marvel, “Homem de Ferro” também é o primeiro elo plantado pelo novo estúdio para realizar, num futuro de médio prazo, um encontro de vários super-heróis da franquia, num filme de Os Vingadores (espécie de Liga da Justiça da Marvel), reunindo poderosos como Capitão América, Thor e Namor. Vem daí a insistente aparição de agentes secretos de uma organização governamental chamada S.H.I.E.L.D. Quem conhece os quadrinhos sabe que a agência serve como elo de ligação entre todos os heróis da Marvel. O novo “Hulk” (2008), por exemplo, já traz uma cena em que Robert Downey Jr reaparece como Tony Stark.
Dá para notar, por tudo isso, que os planos do novo estúdio não se resumem a um filme ou outro, mas vão muito além – e incluem se estabelecer como uma nova e poderosa força no mapa do poder de Hollywood. Não dá para negar, aliás, que até mesmo a escolha do diretor de “Homem de Ferro” faz parte de uma estratégia empresarial bem definida. Afinal, a Marvel já aprendeu, com o “Hulk” de Ang Lee (o mais subestimado de todos os longas-metragem oriundos de quadrinhos desde, talvez, “O Corvo”), que dar corda à visão de cineastas autorais não é, comercialmente, uma atitude inteligente. Considerando tudo isso, é fácil perceber que “Homem de Ferro” é exatamente o filme de super-heróis que o estúdio deseja. Tem uma história convencional que não subestima a inteligência do público, é povoada de bons atores, inclui subtexto com molho político (sem excessos), e amarra tudo seqüências de ação realistas. Não vai mudar o mundo, mas diverte.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/homem-de-ferro/

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