quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Gangues de Nova York



Scorsese filma vida caótica durante o século XIX na grande metrópole com grande senso de realidade
Por: Rodrigo Carreiro

A associação com o infame produtor Harvey Weinstein foi boa e má para o diretor Martin Scorsese. O ponto positivo é que o cineasta, sem dúvida um dos grandes da história de Hollywood, finalmente obteve os recursos necessários para filmar um projeto que acalentava há muitos anos. O ponto negativo é que, devido à má reputação de Weinstein dentro da indústria cinematográfica, “Gangues de Nova York” (Gangs of New York, EUA, 2002) foi rotulado como um filme problemático e irregular, para não dizer ruim, antes mesmo que as pessoas o vissem. Injustiça. O violento épico se encaixa na filmografia de Scorsese com coerência, embora não seja uma obra-prima.
É fácil perceber porque o projeto de transformar em filme o livro homônimo de Herbert Asbury seduzia Scorsese desde 1978. A obra do diretor de “
Taxi Driver” sempre teve um viés meio sociológico, sempre exprimiu uma visão panorâmica da vida urbana nas grandes metrópoles. O autor de “Touro Indomável” filma as idiossincrasias da vida na cidade grande como nenhum outro colega. Por isso, carregou consigo os diretos de filmagem da obra durante anos, esperando que algum produtor lhe concedesse o enorme orçamento necessário para erguer a produção. Weinstein foi o homem que possibilitou a realização do sonho antigo de Scorsese.
Não há como saber se “Gangues de Nova York” ficaria diferente, caso o diretor tivesse mais liberdade nos sets. Weinstein não é esse tipo de produtor. Ele visitava as filmagens com regularidade, teve discussões públicas homéricas com o diretor e exigiu cortes generosos na montagem final, de modo que o longa-metragem ficasse abaixo de três horas de duração, conforme estipulado no contrato. Além disso, fez um marketing agressivo para que o filme faturasse muitos Oscar, conseguindo o efeito inverso: indicado para dez estatuetas douradas, “Gangues de Nova York” saiu de mãos abanando da premiação. O público também foi afetado por essas confusões, e fracassou nas bilheterias, fazendo apenas US$ 77 milhões nos EUA, depois de ter custado US$ 97 milhões.
A recepção desconfiada que o longa-metragem obteve parece ter sido fruto desses problemas, pois se trata de um belo filme. Veja a longa seqüência de abertura, por exemplo. Ela mostra o Padre Vallon (Liam Neeson) se preparando para uma batalha, numa caverna escavada dentro das rochas em
Manhattan, nos anos 1840. Ele é observado pelo filho pequeno, Amsterdam. O que se segue é uma violenta briga de gangues sobre a neve, bem no centro da praça denominada Cinco Pontas, o local mais perigoso da Nova York da época. Ao final da batalha, o branco foi tingido de vermelho e os corpos se acumulam no chão. Vallon caiu, pelas mãos do líder rival Bill The Butcher (Daniel Day-Lewis). Amsterdam, que assistiu a tudo, vai acalentar a vingança por duas décadas, internado em um orfanato, até retornar ao lugar, incógnito, interpretado pelo galã Leonardo DiCaprio.
A história da vingança de Amsterdam é o ponto fraco do filme. Ela envolve a reorganização de muitos clichês do cinema, desde a formação de um triângulo amoroso distorcido (com Bill e a prostituta/ladra Jenny, feita por Cameron Diaz, e o próprio Bill) até a clássica história do homem que sente uma atração irresistível pelo charme rude do inimigo mais odiado. Se o enredo não traz novidades, por outro lado é narrado com absoluta competência por Scorsese. Mas o que o cineasta faz melhor é mesmo retratar a caótica vida nos fétidos subúrbios de Nova York durante as duas décadas que o filme cobre.
Famílias inteiras vivem em cavernas recortadas na rocha, ou em casebres de madeira podre. Porcos e galinhas dividem as ruas com os moradores doentes. Negros e imigrantes são hostilizados abertamente nas ruas, quando não espancados. Grupos rivais de bombeiros voluntários saqueiam livremente as casas que pegam fogo, sob o olhar cúmplice dos policiais corruptos que rondam o lugar. Políticos canalhas roubam, pilham, matam, sem a menor possibilidade de punição.
As condições indignas de sobrevivências fizeram de Cinco Pontas uma panela de pressão prestes a explodir. E ela explode, em 1860. Os dois eventos que abrem e fecham “Gangues de Nova York” – a briga entre as gangues dos Coelhos Mortos (irlandeses imigrantes) e Nativistas (americanos brancos e pobres), e o tumulto que levou a centenas de saques e milhares de mortes em toda a cidade – são dramatizações de episódios reais. O que Scorsese faz, de forma brilhante, é relacioná-los às trajetórias convergentes de Amsterdam e Bill, dois personagens que são como a cara e a coroa de uma moeda. Ambos são, às suas maneiras, repugnantes e fascinantes.
Scorsese sempre teve fama de bom diretor de elencos, mas em “Gangues de Nova York” ele faz um trabalho coletivo excepcional. Cameron Diaz e DiCaprio, dois bons atores, oferecem desempenhos acima da média. Os veteranos Brendan Gleeson, John C. Reilly e Jim Broadbent fazem bonito. E Daniel Day-Lewis é um show à parte com o Açougueiro. Ele é um ator completo: tem expressão corporal arisca, sotaque perfeito, olhar penetrante. Compõe um personagem fascinante, um homem feroz e corrupto, mas que acredita profundamente nos valores esquizóides que defende.
Por fim, os sets impressionantes do italiano Dante Ferretti merecem uma menção honrosa. O sujeito recriou, a partir de desenhos e fotografias antigas, três quarteirões completos da antiga Nova York, dentro dos estúdios da Cinecità, em Roma (Itália), em minúcias. “Gangues de Nova York” é um filme feito à moda antiga, sem efeitos especiais ou truques de edição. Talvez por isso, transpira a atmosfera decadente, sórdida, da vida nos subúrbios em uma época extremamente cruel. Scorsese fez um filme intenso, bem fotografado, com personagens interessantes e enredo seguro. Se não tem a inspiração mágica de uma obra-prima como “Taxi Driver”, está muito acima do que 99% dos seus colegas andam fazendo em Hollywood.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/gangues-de-nova-york/

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