
Por: Rodrigo Carreiro
Romancista de talento, repórter premiado e roteirista celebrado em Hollywood, Truman Capote (1928-1984) é um personagem que renderia uma boa cinebiografia convencional. Egocêntrico, de humor politicamente incorreto e abertamente gay, ele tinha uma personalidade excêntrica que marcou época nos círculos intelectuais norte-americanos. “Capote” (EUA/Canadá, 2005), no entanto, não é uma cinebiografia, e muito menos um filme convencional. Desde já, o trabalho do novato Bennett Miller é um dos trabalhos mais brilhantes e controversos que ilustram o tortuoso processo de criação de um artista, enfocando inclusive a maneira como a arte afeta a vida – tanto quanto a vida afeta a arte – de quem cria.
“Capote” cobre seis anos da vida do personagem-título, de 1959 a 1965. Durante esse período, Truman escreveu a obra-prima “A Sangue Frio”, livro-reportagem sobre uma chacina cometida por dois rapazes na pequena cidade de Holcomb (Kansas). Ele viajou para o lugar decidido a escrever um artigo, para a revista New Yorker, sobre o impacto do crime bárbaro numa comunidade rural. Tudo mudou depois que conheceu Perry Smith (Clifton Collins Jr), um dos assassinos, preso no mês seguinte. Entre os dois, repórter e criminoso, nasceu uma relação complexa e controversa de empatia, difícil de definir em palavras. É essa amizade, erguida sobre um muro de silêncio e dor, bem como a interferência dela na vida e na obra do artista, que o filme radiografa com precisão cortante.
Em uma cena-chave do filme, durante uma conversa com o editor William Shawn (Bob Balaban), Capote tenta explicar o fascínio que Smith – assassino odiado por todo o país pelo ato vil de abater a tiros de escopeta um casal e duas crianças – exerce sobre ele. “Sinto como se tivéssemos crescido na mesma casa; só que eu saí pela porta da frente e ele, pela dos fundos”, enuncia o escritor. É uma metáfora perfeita, porque define a realidade assustadora que Truman experimentou ao se deparar com Smith. O encontro com o criminoso reavivou demônios adormecidos dentro do escritor. Em Perry Smith, Truman Capote viu um espelho. Ficou frente a frente com uma faceta selvagem de si mesmo. E não gostou do que viu.
Capote, o homem, é objeto de uma interpretação fascinante de Philip Seymour Hoffman. Ator versátil e reconhecido pela indústria do cinema como profissional irretocável, Hoffman incorpora à perfeição todos os tiques do excêntrico escritor: a voz efeminada, os gestos afetados, o ego monstruoso, o humor cruel. Em uma das muitas grandes cenas que protagoniza, ele encontra pela primeira vez o policial responsável pela investigação (Chris Cooper, excelente), e tenta intimidá-lo, citando de forma arrogante a marca sofisticada da echarpe que está usando e o nome da revista intelectual para a qual escreve. Sutilmente, chama-o de “caipira”. Mas só consegue dobrá-lo depois de perceber que a mulher deslumbrada do homem adora ouvir histórias dos bastidores de Hollywood.
A performance de Hoffman vai além da pura imitação do verdadeiro Capote. Quando o escritor começa a perceber a natureza da afeição que sente por Perry Smith, por exemplo, vira um poço de angústia, desespero e tensão, cheio de gestos contraditórios; às vezes é um homem solidário e emocional, noutras implacavelmente duro e frio. Entra em cena um conflito interno: Capote, o homem, nutre compaixão por aquele assassino e quer salvá-lo da execução, enquanto Capote, o escritor, deseja vê-lo morto o quanto antes, para que possa terminar o livro em paz. Hoffman comunica esse conflito ao espectador não com palavras, mas com nuances sutis de olhares e expressões faciais.
O trabalho do restante dos atores, incluindo o citado Chris Cooper e a ótima Catherine Keener (no papel da amiga mais íntima de Capote), fornece a sustentação para que Hoffman brilhe. O outro destaque do elenco é Clifton Collins Jr, que compõe Smith como um homem taciturno e de vocabulário surpreendentemente refinado para um criminoso, alguém com grande habilidade para desenhar e inegável pendor artístico, mas com o olhar duro de um homem perturbado.
O roteiro de Dan Futterman, amigo de infância do diretor, acerta em cheio ao mostrar a degradação psicológica de Truman Capote, apostando firmemente no poder de sugestão das imagens. Futterman sabe que as palavras não dão conta da relação especial que existe entre artista e assassino; a natureza dessa amizade está além delas, e portanto só pode ser capturada em imagens. É assim que filme realça a personalidade complexa de Truman, um homem de talento imenso, quase tão grande quanto seu ego (“como você sabe que este vai ser o maior livro da década, se não escreveu uma só palavra?”, pergunta-lhe o editor), mas de índole desagradável, mesquinha e amoral.
Em 1959, quando a trama começa, Capote é um homem alegremente insolente, que não hesita em usar qualquer um – amigos, parentes e chefes incluídos – como meros degraus para alcançar seus objetivos pessoais. No final, ele ainda mantém o humor corrosivo e traços da insolência, mas não há mais alegria. Ali está um artista derrotado pela sua obra. O filme ilustra isso de maneira soberba. Em nenhum momento, por exemplo, é mencionada a palavra “alcoolismo”, mas a freqüência com que vemos as taças de Martini nas mãos de Capote, no decorrer do filme, aumenta assustadoramente rumo ao final da obra. O alcoolismo acabaria por matá-lo, em 1984. Bennett Miller não precisa dizer isso. As imagens valem mais do que mil palavras.
De qualquer modo, “Capote” vai muito além do mero registro do processo criativo de um autor (algo que, por sinal, o hermético “Crime Delicado”, de Beto Brant, faz bem). O longa-metragem desenha um complexo e controverso estudo de personagem, focado sobre o processo irreversível de autodestruição de um indivíduo que tem tudo – fama, fortuna e talento – menos a habilidade de conviver com seus demônios pessoais. O encontro com Perry Smith perturba Capote porque ele perde a capacidade de controlar seus impulsos vitais mais profundos. E o pior é que ele sabe disso; sabe que o encontro o marcará pelo resto da vida.
A célebre frase de Nietzsche cabe como uma luva na situação dramática desenvolvida pelo belo filme de Bennett Miller: “Quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para você”. Não são muitos os trabalhos capazes de dramatizar uma situação tão controversa e polêmica – a amizade entre um assassino e uma celebridade –, e isso só agrega pontos positivos a “Capote”. O que temos aqui é um dos filmes mais corajosos da safra 2005. Considerando que obras polêmicas como “Brokeback Mountain”, “Boa Noite e Boa Sorte” e “Syriana” foram lançados no mesmo ano, isso não é pouco.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/capote/
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