quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Beijos e Tiros

Shane Black brinca com clichês noir em filme repleto de metalinguagem que não se leva a sério
Por: Rodrigo Carreiro
A
metalinguagem e a auto-paródia são dois dos truques mais certeiros que os cineastas utilizam, atualmente, para dar uma roupagem jovem a gêneros antigos, como o filme policial. Mostrar duplas de detetives investigando casos complicados é algo que remonta há décadas, e filmes desse tipo exigem um tempero especial para chamar a atenção. Essas foram as duas armas escolhidas pelo roteirista famoso Shane Black, para retirar sua estréia na direção do lugar comum. Apesar de a tática já começar a dar sinais de envelhecimento (afinal, desde que “Pulp Fiction” as transformou em novidade, já se vai mais de uma década), “Beijos e Tiros” (Kiss Kiss Bang Bang, EUA, 2005) funciona bem. Trata-se de uma comédia policial que se assume como filme desde o primeiro minuto, jamais se leva a sério e brinca com clichês do gênero com base em um arsenal superior de piadas e diálogos.
Shane Black construiu o enredo de “Beijos e Tiros” a partir dos elementos recorrentes do cinema noir. Há um detetive (nesse caso, um arremedo de detetive) de índole amoral, uma mulher fatal, a noite de Los Angeles como ambiente da trama e uma narração em off repleta de ironia. A opção do diretor, porém, não foi de homenagear o gênero realizando uma paródia em tom sério, a exemplo de “
Chinatown” (1974) e mesmo “Sin City” (2005). A idéia era fazer um pastiche, ou seja, uma sátira debochada, que pegasse essas características do noir e as distorcesse, banhando-as com uma roupagem nova. O verniz de atualidade foi conseguido justamente agregando ao filme as duas características citadas no início do texto.
A atualização do noir fica evidente quase se presta atenção na narração em off. A presença de um narrador que pontua a história com comentários cínicos sempre foi um dos mais fortes traços estéticos do cinema noir, e em “Beijos e Tiros” ela irônica, mas diferente. O narrador, que é o ladrão Harry Lockhart (Robert Downey Jr), avisa desde a primeira cena que está narrando um filme, e se dirige diretamente à platéia inúmeras vezes. Ele utiliza um tom coloquial para comentar não exatamente a história, mas o filme feito a partir da história (sacou?). Ele atua inclusive como projecionista, chegando a parar e rebobinar a fita. Um dos momentos em que essa estratégia metalingüística funciona melhor aparece na última cena, quando o narrador brinca com a noção de final feliz típica de Hollywood e ordena que todos os personagens mortos durante o filme voltem, o que por um instante até acontece (nessa cena, até Elvis Presley aparece por lá).
Este é o tipo de humor cínico de “Beijos e Tiros”. E ele funciona, mesmo parecendo exagerado e histérico em alguns momentos (“Nós não somos tira bom e tira mau, somos nova-iorquino e bicha”, diz em certo instante o personagem de Val Kilmer). Cenas como esta são raras, já que a maior parte delas acerta em cheio no senso de humor auto-depreciativo. O filme ainda se beneficia da mão certeira de Shane Black para cenas que mesclem comédia com aventura dramática de alto calibre. O melhor momento, por sinal, é uma dessas interseções de gênero: trata-se do instante em que Harry Lockhart mata uma pessoa pela primeira vez. A seqüência começa cômica, tem uma cena de ação de alta voltagem, flerta com a tragédia e descamba de novo para a comédia, tudo em poucos minutos.
Como se trata de um pastiche, “Beijos e Tiros” tem uma história construída sobre uma colagem de clichês, que pode ser resumida assim: ladrão de aparelhos eletrônicos (Downey Jr) é perseguido pela polícia e invade por engano um teste para atores numa produção de Hollywood, acabando por ser contratado para interpretar um detetive. Para isso, precisa passar por um laboratório com um verdadeiro detetive, um homossexual chamado Gay Perry (Val Kilmer) que trabalha como consultor do estúdio em questão. Juntos, os dois acabam se envolvendo involuntariamente em uma série de assassinatos de mulheres que podem, ou não, estar conectados.
Como todo bom detetive noir, Harry Lockhart é falastrão e amoral. Também possui um senso de humor corrosivo que não poupa nem a si mesmo (“Seu pai te amava, Harry?”, pergunta o amigo Perry, a certa altura; “Às vezes, quando eu me vestia de garrafa”, responde ele). Mas Harry também é burro como uma porta, e tem uma espécie de ímã para atrair confusão. O filme é dividido em cinco “capítulos”, e todos receberam títulos retirados de contos de Raymond Chandler, o mais famoso dos romancistas noir. A quantidade de referências ao estilo noir, tanto em termos literários como cinematográficos, é grande.
A trama do longa-metragem é meio complicada, mas isso é o que menos importa; o grande truque para curtir “Beijos e Tiros” é encará-lo não como filme policial, mas como comédia despretensiosa que brinca com os clichês do gênero noir. A dica é acompanhar os diálogos e situações impagáveis (Harry tem um dos dedos da mão esquerda arrancado duas vezes na mesma noite) sem dar muita bola para detalhes como construção de personagem e coerência lógica. Visto dessa maneira, “Beijos e Tiros” é diversão garantida.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/beijos-e-tiros/

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