
Personagens consistentes e piadas (bem) construídas sobre clichês fazem a diferença nesta comédia engraçada
Por: Rodrigo Carreiro
O último grande movimento autoral ocorrido no seio da indústria cinematográfica norte-americana foi a ascensão, entre as décadas de 1960 e 70, da geração chamada New Hollywood. Diretores como Martin Scorsese, Francis Ford Coppola e William Friedkin produziram um punhado de clássicos (de “O Poderoso Chefão” a “Touro Indomável”) a partir de uma lição aprendida com os autores franceses da nouvelle vague: bons filmes precisam partir de personagens consistentes. Ao que parece, a lição também foi devidamente incorporada pela equipe criativa de “Superbad – É Hoje!” (EUA, 2007), uma surpreendentemente engraçada comédia adolescente de baixo orçamento.
Os integrantes da turma vêm fazendo comédias de costumes interessantes, ao mesmo tempo vulgares e carinhosas, desde “O Virgem de 40 Anos” (2005). Mesmo que ainda não seja possível chamar Seth Rogen (ator e co-roteirista), Judd Apatow (diretor e produtor), Greg Mottola (diretor) e demais colegas de autores, é fato que eles têm produzido material muito acima da média da comédia norte-americana, cada vez mais previsível e modorrenta. Mesmo trabalhando estritamente com clichês e convenções do gênero, e através de um registro que é muitas vezes chulo e limitado (palavrões, gírias, piadas sobre sexo e dejetos corporais), os filmes da trupe conseguem se destacar em meio as mar de mediocridade que impera no cenário do humor em Hollywood. E a principal razão para isto está nos bons personagens, 100% conectados com a juventude contemporânea.
À primeira vista, “Superbad” recicla e atualiza um subgênero raro da comédia dos EUA, que é composto pelos chamados “high school movies” (literalmente, os “filmes de escola”). Este tipo de trabalho se caracteriza por tematizar a fase de transição dos adolescentes entre o colégio e a faculdade. Originalidade não é um ponto forte do roteiro de “Superbad”, escrito pelos amigos Evan Goldberg e Seth Rogen (ator que interpreta o policial gordo de bigodes). A referência mais óbvia é “American Graffiti” (estréia de George Lucas no cinema e filme importante no co texto da geração New Hollywood): toda a trama se passa em um único dia, próximo do final das aulas do último ano de colégio, e culmina com uma festa noturna regada a álcool e tentativas toscas de fazer sexo.
Espectadores familiarizados com este tipo de filme vão reconhecer aqui ecos de “Jovens, Loucos e Rebeldes” (1993), “Picardias Estudantis” (1982) e “American Pie” (1999). Este último, em particular, tem sido muito citado pela crítica norte-americana, por ser protagonizado também por um grupo de jovens amigos nerds cuja amizade entra em crise, enquanto eles buscam transar de qualquer maneira antes do fim do ano letivo. A comparação é tão inevitável quanto injusta. “Superbad” tem trama parecida, sim, e trabalha com elementos cômicos semelhantes – profusão de palavrões, garotos em situações embaraçosas, fluidos corporais –, mas é um filme muito melhor e mais consistente, inclusive porque radiografa de modo muito mais verdadeiro e consistente os hábitos da faixa etária que se propõe a atingir.
A diferença não está apenas na qualidade das piadas. Alguns elas são sensacionais, construídas com cuidado e sem pressa, como as situações vexatórias que giram em torno da mancha de sangue na calça de Seth (Jonah Hill). O fato é que os personagens têm alma. São gente como nós, provocam empatia genuína com os adolescentes na platéia (ou com os adultos que não esqueceram ter sido, um dia, adolescentes). Poderiam existir de verdade. Dá para sentir que eles têm um passado e um futuro, existem em uma dimensão complementar ao filme – enfim, são personagens sólidos. Quando o longa termina, é até possível imaginar os personagens retomando suas vidas.
Isto faz toda a diferença. Na sessão em que vi o filme, um grupo de garotos barulhentos que inicialmente mostrava disposição para estragar a projeção ficou quieto após algumas risadas, fazendo um silêncio só interrompido ocasionalmente por gargalhadas. É preciso respeitar um filme que consegue esse efeito calmante sobre uma platéia com déficit crônico de atenção, especialmente quando a duração total beira as duas horas, o que é bem mais do que o normal, para comédias adolescentes. O sucesso em absorver os espectadores a tal ponto indica claramente que os personagens se conectam com as pessoas da geração à qual pertencem, e isso é sempre bom.
A história gira em torno de amizade do já citado Seth com Evan (Michael Cera), dois meninos que se enquadram na categoria de sacos de pancada da escola. Não são muito inteligentes, nem bonitos, nem atléticos. Os dois vivem os últimos momentos de uma amizade que perdurou por toda a infância. Eles estão prestes a ir para faculdades diferentes. O enredo acompanha um dia promissor na vida de ambos: haverá uma festa noturna na casa de uma amiga em comum, e eles foram convidados (algo raro!), ganhando a missão suplementar de abastecer o estoque de bebidas da casa para a farra. É uma tarefa complicada nos EUA, onde só maiores de 21 anos podem comprar álcool. Isso dispara uma sucessão de confusões e desencontros engraçadíssimos, que descambam num final absolutamente inusitado e agridoce.
Vale a pena observar as atuações espontâneas de todo o elenco. O carismático Jonah Hill e Michael Cera são ótimos, mas o grande ladrão de cenas é Christopher Mintz-Plasse, único adolescente de verdade nas filmagens (tinha 17 anos e era acompanhado diariamente pela mãe). O personagem dele passa a maior parte do filme acompanhado de dois policiais hilariantes (um deles é o co-roteirista Seth Rogen), mais interessados em garantir cerveja grátis do que em proteger a comunidade. Preste atenção das cenas finais desta linha narrativa, que além de incomum também é muito engraçada. Os dois personagens adultos, já perto do final do filme, engatam o discurso esclarecedor que explica e justifica a enorme dose de carinho e atenção dedicada por toda a equipe criativa aos personagens e à história. Pode não ser um clássico, mas “Superbad” é jóia.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/superbad-e-hoje/
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