
Jornada trágica da artista francesa ganha radiografia correta em um melodrama eficiente, mas sem cor
Por: Rodrigo Carreiro
Nada naquela criança indicava que ela poderia se tornar uma grande artista. A menina nasceu pobre, foi desprezada pela mãe e criada pela avó paterna, que era dona de um bordel. Passou a adolescência na estrada, acompanhando o circo onde o pai trabalhava como contorcionista. Começou a cantar na rua, onde gritava por horas a fio, sob sol ou sob chuva, para garantir a próxima refeição. Tinha apenas 1m42 de altura e saúde frágil. Contra todos os prognósticos, Edith Giovanna Gassion se tornou, nos anos 1940, um dos maiores ídolos da França e a cantora mais celebrada de sua época. A jornada trágica da artista, que morreu aos 47 anos, ganha radiografia correta no biográfico “Piaf – Um Hino ao Amor” (La Môme, França, 2007), um melodrama eficiente, mas sem cor.
Dirigida por Olivier Dahan, mais conhecido por ter comandado thrillers criminais como “Rios Vermelhos 2”, se inscreve dentro de um gênero que tem se mostrado muito popular. Ajuda bastante o fato de Piaf – o pseudônimo dado pelo primeiro empresário significa “pardal” e faz referência ao físico franzino da intérprete – ter levado uma vida bem rock’n’roll, seguindo a clássica tradição do artista torturado. Ela teve uma filha aos 17 anos (e escondeu esse fato o quanto pôde). A criança, tratada com o mesmo desleixo que a própria mãe havia dedicado a Edith, morreu aos dois anos. Piaf teve que pedir esmolas para sobreviver, tinha relações estreitas com cafetões e prostitutas em Paris, bebia como um gambá e viciou-se em morfina a partir de 1951, chegando a tomar dez injeções diárias para aplacar dores crônicas de coluna.
Como se não bastasse, a cantora ainda levou uma vida amorosa agitada, mantendo romances com celebridades como Yves Montand e o boxeador Marcel Cerdan, campeão mundial dos pesos médios. Dizia-se também que ela gostava de apanhar dos amantes e que teve também aventuras homossexuais com divas como Marlene Dietrich e Josephine Baker (esses dois boatos nada abonadores, porém, ficaram convenientemente fora do filme). Não é de admirar que Dahan, que também assina como co-roteirista, tenha tido dificuldades em encontrar uma linha narrativa capaz de condensar tanta agitação. Em clima de superprodução, com parte técnica (cenografia, fotografia, direção de arte) impecável, ele quebra a cronologia linear para colocar “Piaf – Um Hino ao Amor” ao lado de outras cinebiografias contemporâneas (“Johnny e June”, “Ray”, “Ali”), mas isso não significa que o filme seja realmente bom.
A narrativa alterna os fatos mais importantes da trajetória da cantora, contados mais ou menos na ordem em que ocorreram, com trechos contemplativos dela na velhice. É a mesma fórmula utilizada com sucesso por Milos Forman em “Amadeus”, e depois copiada à exaustão por quase todas as cinebiografias de artistas torturados que viveram com intensidade. Não ajuda muito o fato de a estrela francesa ter levado uma vida desregrada e autodestrutiva, bem semelhante a estrelas do rock como Ray Charles, cuja cinebiografia tem a mesmíssima estrutura, com semelhanças mais do que evidentes. A opção por cenas curtas impede o longa de capturar a eterna busca, a dor, a fragilidade, a complexidade emocional de Piaf. Isto acaba por suprimir as nuances e texturas dramáticas que poderiam ter dado vitalidade e energia ao resultado final.
Há, perto do final, um belíssimo plano-seqüência que deixa claro como “Piaf” poderia ser melhor se tivesse menos cenas, e aquelas restantes pudessem ganhar mais ressonância emocional. Trata-se de uma tomada sem cortes, com cerca de quatro minutos, que começa em um quarto de hotel e termina no palco. É um momento trágico, belo, em que Dahan alcança o equilíbrio perfeito entre virtuosismo técnico (o trabalho de câmera, a edição de som, a noção de espaço) e suspensão dramática suficiente para o espectador ruminar toda a dor daquele momento. Fosse o filme todo composto por cenas assim (não necessariamente com o mesmo exibicionismo), e toda a estatura trágica da vida de Edith Piaf poderia ter vindo à tona.
De qualquer forma, seria um crime não mencionar o desempenho estratosférico de Marion Cotillard, no papel-título. A atriz francesa raspou as sobrancelhas, usou uma prótese sobre os dentes e contou com uma assombrosa maquiagem que lhe custava cinco horas por dia, e alcançou uma semelhança é impressionante. Extremamente detalhista nos detalhes físicos, Cotillard interpreta Piaf como um ser frágil e voluntarioso. Caminha encurvada, arrastando os pés. Encara os interlocutores de olhos esbugalhados e sorri como Nosferatu, o vampiro, gerando uma complexa reação mista de repulsa e fascínio. Presente em virtualmente todas as seqüências, Cotillard engole todo o elenco a ajuda a elevar o filme a uma estatura um pouco acima do convencional. De quebra, quem assistir ainda garante uma trilha sonora imbatível em melancolia e sutileza, e que não cai no pecado do exagero.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/piaf-um-hino-ao-amor/
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