terça-feira, 24 de novembro de 2009

Piaf - Um Hino Ao Amor


Jornada trágica da artista francesa ganha radiografia correta em um melodrama eficiente, mas sem cor
Por: Rodrigo Carreiro

Nada naquela criança indicava que ela poderia se tornar uma grande artista. A menina nasceu pobre, foi desprezada pela mãe e criada pela avó paterna, que era dona de um bordel. Passou a adolescência na estrada, acompanhando o circo onde o pai trabalhava como contorcionista. Começou a cantar na rua, onde gritava por horas a fio, sob sol ou sob chuva, para garantir a próxima refeição. Tinha apenas 1m42 de altura e saúde frágil. Contra todos os prognósticos, Edith Giovanna Gassion se tornou, nos anos 1940, um dos maiores ídolos da França e a cantora mais celebrada de sua época. A jornada trágica da artista, que morreu aos 47 anos, ganha radiografia correta no biográfico “Piaf – Um Hino ao Amor” (La Môme, França, 2007), um melodrama eficiente, mas sem cor.
Dirigida por Olivier Dahan, mais conhecido por ter comandado thrillers criminais como “
Rios Vermelhos 2”, se inscreve dentro de um gênero que tem se mostrado muito popular. Ajuda bastante o fato de Piaf – o pseudônimo dado pelo primeiro empresário significa “pardal” e faz referência ao físico franzino da intérprete – ter levado uma vida bem rock’n’roll, seguindo a clássica tradição do artista torturado. Ela teve uma filha aos 17 anos (e escondeu esse fato o quanto pôde). A criança, tratada com o mesmo desleixo que a própria mãe havia dedicado a Edith, morreu aos dois anos. Piaf teve que pedir esmolas para sobreviver, tinha relações estreitas com cafetões e prostitutas em Paris, bebia como um gambá e viciou-se em morfina a partir de 1951, chegando a tomar dez injeções diárias para aplacar dores crônicas de coluna.
Como se não bastasse, a cantora ainda levou uma vida amorosa agitada, mantendo romances com celebridades como Yves Montand e o boxeador Marcel Cerdan, campeão mundial dos pesos médios. Dizia-se também que ela gostava de apanhar dos amantes e que teve também aventuras homossexuais com divas como Marlene Dietrich e Josephine Baker (esses dois boatos nada abonadores, porém, ficaram convenientemente fora do filme). Não é de admirar que Dahan, que também assina como co-roteirista, tenha tido dificuldades em encontrar uma linha narrativa capaz de condensar tanta agitação. Em clima de superprodução, com parte técnica (cenografia, fotografia, direção de arte) impecável, ele quebra a cronologia linear para colocar “Piaf – Um Hino ao Amor” ao lado de outras cinebiografias contemporâneas (“
Johnny e June”, “Ray”, “Ali”), mas isso não significa que o filme seja realmente bom.
A narrativa alterna os fatos mais importantes da trajetória da cantora, contados mais ou menos na ordem em que ocorreram, com trechos contemplativos dela na velhice. É a mesma fórmula utilizada com sucesso por Milos Forman em “Amadeus”, e depois copiada à exaustão por quase todas as cinebiografias de artistas torturados que viveram com intensidade. Não ajuda muito o fato de a estrela francesa ter levado uma vida desregrada e autodestrutiva, bem semelhante a estrelas do rock como Ray Charles, cuja cinebiografia tem a mesmíssima estrutura, com semelhanças mais do que evidentes. A opção por cenas curtas impede o longa de capturar a eterna busca, a dor, a fragilidade, a complexidade emocional de Piaf. Isto acaba por suprimir as nuances e texturas dramáticas que poderiam ter dado vitalidade e energia ao resultado final.
Há, perto do final, um belíssimo
plano-seqüência que deixa claro como “Piaf” poderia ser melhor se tivesse menos cenas, e aquelas restantes pudessem ganhar mais ressonância emocional. Trata-se de uma tomada sem cortes, com cerca de quatro minutos, que começa em um quarto de hotel e termina no palco. É um momento trágico, belo, em que Dahan alcança o equilíbrio perfeito entre virtuosismo técnico (o trabalho de câmera, a edição de som, a noção de espaço) e suspensão dramática suficiente para o espectador ruminar toda a dor daquele momento. Fosse o filme todo composto por cenas assim (não necessariamente com o mesmo exibicionismo), e toda a estatura trágica da vida de Edith Piaf poderia ter vindo à tona.
De qualquer forma, seria um crime não mencionar o desempenho estratosférico de Marion Cotillard, no papel-título. A atriz francesa raspou as sobrancelhas, usou uma prótese sobre os dentes e contou com uma assombrosa maquiagem que lhe custava cinco horas por dia, e alcançou uma semelhança é impressionante. Extremamente detalhista nos detalhes físicos, Cotillard interpreta Piaf como um ser frágil e voluntarioso. Caminha encurvada, arrastando os pés. Encara os interlocutores de olhos esbugalhados e sorri como Nosferatu, o vampiro, gerando uma complexa reação mista de repulsa e fascínio. Presente em virtualmente todas as seqüências, Cotillard engole todo o elenco a ajuda a elevar o filme a uma estatura um pouco acima do convencional. De quebra, quem assistir ainda garante uma trilha sonora imbatível em melancolia e sutileza, e que não cai no pecado do exagero.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/piaf-um-hino-ao-amor/

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