
Julio Medem constrói romance trágico cheio de metáforas visuais e com uma complexa e interessante narrativa circular
Por: Rodrigo Carreiro
Palíndromo. O significado dessa palavra enigmática é a chave para compreender o mais poético trabalho do diretor espanhol Julio Medem, intitulado “Os Amantes do Círculo Polar” (Los Amantes Del Círculo Polar, Espanha/França, 1998). O filme que levantou as sobrancelhas dos amantes de cinema para a obra do cineasta é um palíndromo cheio de palíndromos. Complicado entender o raciocínio? Calma que a gente chega lá. Um palíndromo é, na definição clássica, uma palavra que se pode ler tanto de frente para trás, no sentido normal, quando de trás para frente, em sentido inverso. E é assim que começa “Os Amantes do Círculo Polar”: pelo final.
O casal que protagoniza “Os Amantes do Círculo Polar” também preenche perfeitamente a definição. Otto e Ana são seus nomes. Eles se conhecem na escola, ainda na infância. Em dois deliciosos episódios fortuitos, que envolvem uma bola e aviõezinhos de papel, as duas crianças se apaixonam uma pela outra, sem que um saiba do sentimento do outro. Eles mal se falam; apenas se olham, enamorados, mas sem coragem de se aproximar. Uma coincidência, no entanto, vai reuni-los: o pai de Otto, Álvaro (Nancho Novo), e a mãe de Ana, Olga (Maru Valdivieso), se casam. Os dois passam, então, a serem criados na mesma casa, como irmãos.
Esse é o princípio de uma envolvente história de amor, que atravessará duas décadas repletas de altos e baixos; ou melhor, cheias de idas e vindas. A teoria de Julio Medem, característica principal que atravessa vários trabalhos que dirigiu, é a essência de “Os Amantes do Círculo Polar”: a vida transcorre de forma circular. Ela é feita de ciclos. Medos, amores, ciúmes, tudo isso vai e vem, regido pelo destino, por uma lei aleatória de encontros e desencontros. Os dois personagens pressentem e aceitam isso. “Eu poderia contar toda a minha vida como um trem de coincidências”, explica Ana, em certo momento. Otto vai mais longe: “A vida tem muitos ciclos”.
A narrativa de Medem é complexa e enfatiza uma série de elementos evocativos da palindromia. Espectadores mais atentos vão encontrar uma série de imagens recorrentes, que são aparentemente insignificantes, mas possuem importância na narrativa; um ônibus vermelho, por exemplo, aparece insistentemente em diversos momentos das vidas dos personagens. Talvez ele seja uma metáfora evidente para o destino. Talvez esteja ali para confundir o espectador. De qualquer modo, é intrigante.
A própria câmera de Medem, que privilegia tonalidades azuladas, mais frias, insiste em focalizar elementos circulares. As seqüências de abertura e de encerramento do longa-metragem exibem closes em olhos humanos. Uma bola, como já foi dito, representa parte importante da narrativa. O título do longa-metragem possui a palavra “círculo”. É na região gelada e deserta que Ana, já adulta, vai se isolar para dar um jeito em uma vida de fracassos. Também é para lá que Otto, também infeliz, voa com seu avião, levando cartas da Finlândia para a Espanha e vice-versa. Claro que eles desejam se encontrar, como o início do filme revela. Ou o final. Aqui, é evidente, as duas coisas estão interligadas.
A maior pista do quebra-cabeças montado por Julio Medem está nos nomes dos personagens. Otto e Ana são dois palíndromos, como ambos percebem. Desde crianças, os dois parecem compreender que seus destinos estão entrelaçados. Manipulando todos esses elementos, Julio Medem constrói uma extraordinária mescla de comédia e tragédia, com narrativa circular, complex a refinada. “Os Amantes do Círculo Polar” tem semelhanças temáticas e narrativas evidentes com seu sucessor, “Lucía e o Sexo”. Ambos são como versões de “Romeu e Julieta” para o século XXI, roteirizadas pelo escritor argentino Julio Cortazar, o mais famoso amante dos palíndromos.
Medem ainda tem um trunfo extraordinário: ele mantém a platéia em permanente estado de tensão, porque constrói o filme com dois narradores, exatamente Otto e Ana. Nós, espectadores, sabemos o que cada um pensa a respeito do outro. Conhecemos cada medo, desejo, insegurança, cada sensação e emoção de Otto e Ana. Somos colocados em uma posição de onipresença, porque um não sabe do outro.
Freqüentemente, Julio Medem expõe as diferentes reações de um e de outro sobre o mesmo evento. É uma estratégia inteligente, pois explora ao máximo a tensão da platéia. No fundo, cada espectador simpatiza com Otto e com Ana. Queremos juntá-los, pois sabemos que se amam. Mas eles não sabem disso. Pelo menos, não têm certeza. Somente os ônibus vermelhos – ou seja, os elementos aleatórios do destino, que fazem da vida um círculo perpétuo – são capazes de juntá-los e separá-los, ao sabor do vento.
Otto e Ana são interpretados por seis diferentes atores, três para cada personagem (infância, adolescência, idade adulta). Fele Martínez (“Fale Com Ela”) e Najwa Nimri (“Lucía e o Sexo”), que encarnam o casal na maior parte do tempo, estão extraordinários; ambos têm expressões faciais que exprimem uma certa incompletude, uma sensação de que falta algo. São jovens, são belos, vivem um amor trágico e parecem saber disso. Talvez por se passar na Europa e envolver protagonistas jovens, “Os Amantes do Círculo Polar” também apresenta alguma semelhança com “Antes do Amanhecer”, de Richard Linklater. É, porém, mais rebuscado e ambicioso.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/amantes-do-circulo-polar-os/
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