
Por: Rodrigo Carreiro
“Esta é a história de um homem chamado Harold Crick e seu relógio de pulso”. A frase de abertura da comédia romântica “Mais Estranho que a Ficção” (Stranger than Fiction, EUA, 2006) dispensa uma análise mais profunda para deixar claro que o filme vai tentar, à custa de criatividade e uma boa pitada de metalinguagem, fugir do incômodo lugar comum que os exemplares do gênero têm freqüentado, desde sempre. O filme, bastante elogiado pela crítica internacional, marcou a elevação do roteirista Zach Helm à categoria dos escritores-autores, seguindo a linha aberta por Charlie Kaufman (“Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”).
A comparação com Kauffman não é despropositada. A ligação entre os dois roteiristas inclusive foi explorada ao máximo pela Sony, estúdio responsável pela distribuição do filme. Há, sim, semelhanças – e elas são ainda maiores do que se pode imaginar. Além de abusar da metalinguagem, criando uma “ponte” entre realidade e ficção, entre personagens da história e criadores dela, o filme também não tem medo de celebrar um romantismo deslavado, à moda antiga mesmo, assim como Kaufman faz. “Mais Estranho que a Ficção” é podre de romântico, tanto que defende a idéia (um bocado polêmica) de que por amor vale tudo, até mesmo largar mão da ousadia e ser convencional.
Dirigido por Marc Forster, cineasta eficiente que ainda não conseguiu mostrar uma personalidade própria, apesar de dirigir filmes divertidos e interessantes (“A Última Ceia”, “Em Busca da Terra do Nunca”), o filme tem uma narrativa moderninha, ágil, e isto inclui uma série de efeitos gráficos utilizados, aqui e acolá, para sublinhar a personalidade obsessivamente pragmática do protagonista, o tal Harold Crick. Inteligentemente, Forster usa o recurso (visto antes em “Clube da Luta”, de David Fincher) com discrição, sem exageros, e isto garante que a narrativa seja veloz e cativante, sem irritar pelo excesso e pela repetição.
Harold Crick é um auditor da Receita Federal. Um metódico de carteirinha. O tipo de pessoa cuja vida é governada de forma autocrática pelos números. Ele passa a escova nos dentes 76 vezes a cada nova escovada. Pega sempre o mesmo ônibus, às 8h17, e tira um minuto e meio de pausa no trabalho, no meio do dia, para um cafezinho. Ou seja, Crick é um autômato, uma espécie de robô de carne e osso que repete funções sem pensar sobre elas. Até o dia em que Harold começa a ouvir uma voz feminina – a mesma voz feminina que nós, do lado de cá da tela ouvimos. Uma voz que narra a vida dele. Harold não acredita. Acha que está ficando louco.
Ao invés de um diagnóstico de esquizofrenia, contudo, ele recebe da terapeuta a dica de procurar um professor de Literatura. Não demora muito para que Harold descubra que é personagem de um romance, e está condenado a morrer no final, a não ser que descubra quem é a autora. Nisso, a platéia está à frente dele, pois sabemos que a mulher é Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa que sofre de bloqueio criativo. A novidade apavorante, ao contrário do que se pensa, é a melhor coisa que poderia acontecer a Harold. A voz ameaçadora lhe arranca da letargia e o faz vivo novamente. Quase sem querer, ele começa a fugir da rotina – e numa comédia romântica, todos sabemos onde isso vai dar. Harold, claro, se apaixona pela mais improvável das criaturas: Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma simpática padeira que caiu na malha fina e está sendo investigada… por Harold.
OK, “Mais Estranho que a Ficção” está longe de ser o filme que vai mudar sua vida. Até mesmo o criativo roteiro comete falhas grosseiras, como abrir espaço para uma personagem sem qualquer função narrativa: uma mulher durona (Queen Latifah), enviada a Karen pela editora, preocupada com o prazo de entrega do romance. Logicamente, a moça está ali apenas para servir de ouvido à escritora, de forma que ela possa compartilhar seus pensamentos na platéia sem ser mostrada como doida ou excêntrica, por falar sozinha. Afinal de contas, a narração em off (muleta que serve de solução para casos parecidos) já está sendo usada, mas em contexto tão diferente que utilizá-la de novo confundiria a cabeça do público.
De qualquer forma, a atmosfera cômico-melancólica funciona que o filme abraça funciona bem. O texto de Zach Helm é divertido, e cria empatia real entre o espectador e o personagem principal. O desempenho acima da média do elenco faz o resto. De repente, estamos torcendo para que tudo dê certo entre Harold e Ana, porque eles parecem tão bonzinhos, tão gente como a gente. Curiosamente, a solução bolada pelo roteirista para criar o inevitável happy end inclui até mesmo uma autocrítica disfarçada, injetada na história através da difícil decisão que Karen precisa tomar com relação ao destino do seu protagonista (“eu me contento com bom, ao invés de sublime”). Sim, ela está falando do filme. Zach Helm fez de propósito. E está tudo bem.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/mais-estranho-que-a-ficcao/
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