terça-feira, 24 de novembro de 2009

Última Parada 174


É irônico que um longa-metragem sujo, nervoso, desbocado e bem feito ajude a alimentar os preconceitos que parte da crítica brasileira tem contra Bruno Barreto
Por: Rodrigo Carreiro

Por razões que lhe escapam do controle, Bruno Barreto foi se tornando, ao longo de uma carreira construída parte no Brasil e parte em Hollywood, o cineasta que a crítica nacional ama odiar. Parte do desprezo que os intelectuais do cinema sempre lhe reservaram vem do fato de Bruno ter nascido em berço esplêndido. Por ser filho do produtor mais importante e respeitado do país (Luiz Carlos Barreto) e ter trânsito livre nos bastidores do poder, ele não teve que lutar para fazer filmes, como a maioria dos diretores que não foi criada no meio cinematográfico. O tipo de filme desenvolvido por ele, limpinho e com indisfarçável tino comercial, também não ajudou muito. O diretor ajudou a perpetuar estereótipos turísticos do Brasil – a morena gostosa, as praias cariocas – em trabalhos como “Gabriela Cravo e Canela” (1982) e “Bossa Nova” (2000). Levou muita cacetada por praticar esse cinema estilo “cartão postal”.
É irônico, portanto, um longa-metragem sujo, nervoso e desbocado como “Última Parada 174” (Brasil/França, 2008) ajude a alimentar os preconceitos que parte da crítica brasileira tem contra Bruno. Em circunstâncias normais, o projeto teria tudo para representar uma grande reviravolta na carreira dele (se não em termos econômicos, certamente na questão do respeito crítico). Trata-se de uma história extraordinária, de alta voltagem emocional, e muito bem filmada. O grande problema é que Bruno Barreto ficcionalizou um episódio bastante conhecido dos brasileiros, e que já foi tema de outro grande filme – “Ônibus 174”, documentário de José Padilha. Por causa disso, parte da crítica nacional deixou de lado os méritos estéticos e narrativos do trabalho de Bruno para destacar a suposta falta de originalidade do projeto. Para essa turma, se uma história foi (bem) contada num filme, não existe qualquer motivo para contá-la em outro filme. Se um sujeito faz isso, ainda mais alguém que desperta desconfiança, como Bruno Barreto, está mexendo em vespeiro.
Uma das reprimendas mais duras que “Última Parada 174” tem recebido diz respeito, justamente, à enorme mudança de estilo demonstrada pelo cineasta. Bruno Barreto sempre adotou um estilo narrativo clássico, limpo, em filmes que observam com naturalidade a classe média, mas também teve enorme dificuldade de mostrar as nuances da periferia brasileira. No filme de 2008, o diretor resolveu remar na contramão de sua obra pregressa. Ele aposta todas as fichas na estética crua, urgente e despojada que caracteriza a maior parte dos trabalhos de sucesso feitos no Brasil desta primeira década do século XXI (entre eles “Cidade Baixa”, “Madame Satã” e, claro, “
Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, os dois últimos referências fundamentais para compreender o filme de Bruno). Para muita gente, seria a mesma coisa que uma banda de rock’n’roll decidir fazer um disco de pagode, somente para seguir a moda. Ficaria bem feito, mas sem alma.
Se deixamos todo esse raciocínio de lado para nos concentramos exclusivamente na obra em questão, contudo, teremos uma boa surpresa. “Última Parada 174”, é sim, um bom filme, repleto de proezas técnicas e narrativas dignas de um cineasta veterano, que domina bem o seu ofício. Os méritos são muitos: o elenco desconhecido (e semi-amador) alcança desempenhos brilhantes, fotografia e direção de arte dão ao filme o tom urgente e abrasador que ele necessita para funcionar em um nível emocional alto, o roteiro escrito por Bráulio Mantovani (“Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, entre outros) capta o vocabulário coloquial e o jeito “ou-vai-ou-racha” das favelas cariocas. De quebra, a câmera de Bruno Barreto filma com franqueza desconcertante a sexualidade vulcânica de uma juventude sem perspectivas, que transa furiosamente como se não houvesse amanhã. “Última Parada 174” só perde o rumo no terceiro ato, quando flerta desastradamente com toques de melodrama ausentes até então.
Embora o cineasta tenha dado o pontapé inicial no projeto com a intenção de contar uma história lateral ao seqüestro do ônibus, ele acabou optando por fazer uma cinebiografia de Sandro Barbosa do Nascimento. O rapaz de 22 anos protagonizou um espetáculo televisivo de violência ao vivo, ao seqüestrar um ônibus com duas dezenas de passageiros, no ano 2000. O episódio foi transmitido ao vivo para todo o Brasil, e visto por mais de 60 milhões de pessoas. Inicialmente, Bruno Barreto pensava em filmar a história da mãe adotiva de Sandro, focalizando principalmente a relação entre os dois (um supria a carência afetiva do outro). A mulher abre e fecha o filme, em duas cenas habilmente conectadas, mas não aparece muito no recheio. O fio condutor da narrativa é mesmo o rapaz que escapou, adolescente, de morrer no episódio conhecido nacionalmente como Chacina da Candelária, apenas para virar protagonista de um show televisivo de horrores, alguns anos mais tarde.
Ao contrário de José Padilha, que tratou o caso com rigor jornalístico, Bruno Barreto ficcionaliza livremente a trajetória de Sandro (Michel Gomes), inserindo personagens fictícios e tomando diversas licenças poéticas. O resultado é interessante. Uma das boas idéias é a inclusão do briguento Alê Monstro (Marcello Melo Jr), que nunca existiu na realidade. O jovem, que inicia o filme como adversário e termina como melhor amigo do protagonista, parece uma versão endiabrada e com menos cabelo de Zé Pequeno (“Cidade de Deus”), semelhança realçada pela interpretação agressiva e cheia de gírias do ator iniciante que lhe dá vida. A amizade que surge entre os dois é cheia de verdade e paixão, e é desenvolvida com muita densidade e senso de realidade pelo roteiro, assim como a relação afetiva que Sandro mantém com uma prostituta (Gabriela Luiz). O sexo entre os dois, cheio de tesão e tensão, é certamente perturbador, porque funciona como indício claro do tamanho da carência que Sandro carrega dentro de si, uma carência que, em última instância, vai acabar funcionando como elemento catalisador da tragédia.
A crueza tão perseguida por Bruno Barreto transparece bem na fotografia suja, escura, que valoriza a luz natural e põe os becos estreitos e os barracos imundos das favelas cariocas na tela sem retoques. Na maior parte do longa-metragem, o cineasta evitou usar storyboards, a fim de permitir que o improviso dos atores soasse mais livre, e a técnica funciona bem. Os dois primeiros atos de “Última Parada 174”, enfim, deixam ótima impressão. O filme só desmonta de verdade no terceiro ato, exatamente quando Bruno Barreto focaliza o seqüestro do ônibus. Apesar da ótima sacada de usar o ator André Ramiro (o aspirante André Matias de “Tropa de Elite”) no papel do policial encarregado de negociar com Sandro, Bruno Barreto exagera na carga melodramática do material filmado, criando uma série de momentos artificiais e exagerados – o improvável olhar cruzado das duas mulheres na hora do desfecho é apenas um deles – que implodem todo o esforço realista feito até então. O excesso de música e câmera lenta quase joga o filme na vala comum dos dramalhões. A última tomada, apesar de ser dramaturgicamente correta, porque rima perfeitamente com a primeira cena, também é puro melodrama. Um pecado para um filme que até então tinha conseguido ser tão duro.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/ultima-parada-174/

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