quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Happy Feet

Final frouxo e confuso mancha uma animação musical dinâmica, bem filmada e de grande originalidade
Por: Rodrigo Carreiro

Embora costumem ser muito elogiadas, as animações infantis não prezam pela originalidade. Via de regra, os filmes do gênero – mesmo os melhores exemplares, como “Procurando Nemo” ou “Monstros S/A” – sempre contam variações da mesma história. Talvez por ter sido comandada por um cineasta veterano e oriundo de produções live action, com atores de carne e osso, “Happy Feet – O Pingüim” (EUA, 2006) consegue, em boa parte do tempo, evitar esta armadilha, investindo em um formato narrativo diferente e em uma trama que vai além do tradicional “rapaz-imaturo-aprende-uma-lição-sobre-valores-familiares-e-amizades”. Sozinha, a característica já seria suficiente para colocar o filme do australiano George Miller num patamar amplamente positivo dentro do gênero.
No entanto, este não é o único mérito de “Happy Feet – O Pingüim”. O título produzido pela Warner tem diversas outras qualidades, entre elas promover uma interessante retomada da tradição musical dos desenhos animados, algo que andava meio esquecido nos exemplares mais recentes do gênero (é importante observar, contudo, que os números musicais não seguem a linha clássica, mas retrabalham canções populares em medleys orquestrados, do modo como foi feito no romântico “
Moulin Rouge”, de 2001). Além disso, exibe um trabalho de câmera de tirar o fôlego e possui uma animação computadorizada extremamente realista, de qualidade impecável. Só não é perfeita porque perde o rumo nos últimos 30 minutos e tem um final não apenas confuso, mas frouxo, insosso e inverossímil, gerando uma sensação decepcionante.
Uma breve espiada na seqüência de abertura já deixa claro que “Happy Feet – O Pingüim” vai trilhar um caminho diferente. Trata-se de um longo momento musical que retrata um casal de pingüins se apaixonando, em um medley esperto de canções de Prince (ela) e Elvis Presley (ele). A inspiração óbvia é a famosa cena do elefante em “Moulin Rouge” – a presença da atriz Nicole Kidman como protagonista feminina das duas seqüências apenas confirma isso. O uso inteligente de canções populares do século XX pontua todo o filme, com arranjos inventivos que promovem incursões em diversos gêneros, do gospel ao canto gregoriano, do rock’n’roll à música latina cheia de gingado. Beach Boys, Queen e Beatles estão entre os artistas citados, quase sempre em momentos inspirados.
A história do filme foi inspirada em um fato curioso – e real – sobre a vida dos pingüins. No início dos anos 1990, o diretor australiano George Miller (“Mad Max”, “Babe – O Porquinho Atrapalhado”) viu um documentário sobre estes animais, e descobriu que cada exemplar da espécie dos imperadores desenvolvia uma espécie de música pessoal, durante a infância. Esta “canção” passava a ser usada pelos bichos não apenas para se comunicar, mas principalmente para atrair o sexo oposto e acasalar. A partir daí, Miller desenvolveu a história de um pingüim diferente, chamado Mano, que nasce com um pequeno desvio de comportamento: ele não sabe cantar, mas adora sapateado. O filme narra as desventuras vividas pelo rapaz para se impor diante da tribo, enfrentando o preconceito de todos, mas jamais abrindo mão de sua verdadeira paixão, que é a dança.
A seqüência de abertura mostra o momento em que os pais de Mano se conhecem. É excelente, mas não a melhor cena do filme, que tem diversos momentos brilhantes, conseguindo alternar perfeitamente os obrigatórios momentos de ação com números musicais intensos e espetacularmente coreografados. Aventura e reomance são combinados com inteligência. Em uma alucinante seqüência, por exemplo, Mano nada furiosamente sob uma geleira para escapar de uma foca assassina, ao som de “Do It Again”, dos Beach Boys. Noutra, mais suave, Mano consegue finalmente despertar a atenção de Glória, pingüim por quem é apaixonado, transformando com um sapateado digno de Fred Astaire uma versão lenta e suave do sucesso disco “Boogie Wonderland” em uma irresistível batucada percussiva. De fato, o trabalho dos coreógrafos é tão brilhante quanto a meticulosa construção musical dos medleys utilizados no filme.
A excelência do trabalho dos coreógrafos fica ainda mais evidente quando se observa a preferência do diretor por takes longos e com movimentos rápidos e acrobáticos de câmera. O estilo gera seqüências incomuns em animações digitais, repletas de tomadas com poucos cortes e uso abundante do zoom. Os números não mentem: um filme do gênero costuma ter cerca de dois mil planos, enquanto “Happy Feet” estaciona na faixa dos 800. O resultado é um visual freqüentemente espetacular, transbordando criatividade nos ângulos de câmera. Meras conversas entre dois personagens, por exemplo, são filmadas com a câmera girando graciosamente entre eles, em movimentos circulares e contínuos, sem cortes. O resultado é ótimo.
A preferência por um estilo extremamente realista também encaixa bem na proposta do filme. Para alcançar o efeito pretendido, que tenta emular a realidade da melhor maneira possível, a equipe fez duas viagens à Antártida e bateu 80 mil fotos, numa busca obsessiva pelas texturas perfeitas para gelo, neve, penas de animais e movimento das partículas de poeira. Até mesmo o modo como a luz do sol reflete no gelo foi intensamente estudado. Depois disso, a equipe de animadores trabalhou duro durante quatro anos para dar vida aos personagens. E eles são perfeitos: as tomadas panorâmicas dos pingüins imperadores dançando em uníssono são imagens sensacionais, e poderiam tranqüilamente fazer parte do documentário francês “A Marcha dos Pingüins”. Ninguém notaria a diferença das imagens reais para aquelas geradas por computador.
Como se não bastasse, o formato musical abre espaço para que os atores revelem dotes surpreendentes. Brittany Murphy (que faz a voz de Glória, a melhor cantora da geração de Mano) é uma grata surpresa, interpretando duas canções de forma afinada e melodiosa, enquanto Hugh Jackman, que tem um histórico largo de participações em musicais na Broadway, confirma que pode cantar tão bem quanto um intérprete profissional. Já no lado cômico, o destaque fica com Robin Williams, que faz dois personagens bem diferentes (o pingüim latino Ramon e o guru excêntrico dos seixos), mas igualmente hilariantes.
Infelizmente, todas essas qualidades descritas acima não são suficientes para transformar “Happy Feet” em um clássico da animação infantil. O desastre acontece nos 30 minutos finais, a partir de certo momento da história que simboliza perfeitamente a encruzilhada em que se meteram os roteiristas Warren Coleman, John Collee e Judy Morris. Na cena citada, Mano se vê no alto de um penhasco, de frente para o oceano, em uma verdadeira sinuca de bico. Voltar atrás seria admitir a derrota, e ir em frente resultaria em suicídio. A imagem resume perfeitamente o drama em que se meteram os roteriristas.
Aliás, vendo tudo ali da platéia, é quase possível sentir a dúvida de Mano refletindo a hesitação dos roteiristas: e agora, para onde o filme vai? A escolha tomada (pelo personagem e pelos escritores) é terrivelmente errada. Não faz sentido para a história como um todo, desperdiça completamente a empatia emocional criada antes entre público e protagonista, e ainda por cima força a barra para passar uma mensagem ecológica ao público. Nada errado com isso, se a tal mensagem não fosse embalada de forma panfletária e grosseira. Em resumo, um encerramento lamentável para um filme tão bacana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário