terça-feira, 24 de novembro de 2009

Três Reis


Comédia de humor negro enfoca Guerra do Iraque de perspectiva original e corajosa
Por: Rodrigo Carreiro

O cineasta David O. Russell provocou uma enorme polêmica, inadvertidamente, ao dar uma entrevista casual enquanto promovia o filme de guerra “Três Reis” (Three Kings, EUA, 1999). Um dos entrevistadores lhe questionou como tinham sido feitas as incríveis tomadas que mostram o percurso de uma bala dentro de um corpo humano. Russell não pestanejou. Com a cara mais lisa do mundo, disse que os produtores haviam comprado cadáveres de verdade no mercado negro para filmar aquelas cenas. Isso foi publicado, e milhares de espectadores fugiram do filme, horrorizados, antes que Russell viesse a público para explicar que estava brincando, e que as cenas tinham sido feitas, na verdade, com a ajuda de computadores. Mas o estrago já estava feito. “Três Reis” sumiu no esquecimento.
Foi a polêmica errada na hora errada. O conteúdo do filme, a rigor, tinha muito potencial para a polêmica, especialmente dentro dos Estados Unidos. Desde “M.A.S.H.”, de Robert Altman, que um filme não mostrava a guerra de uma forma tão cínica e verdadeira; no caso, a Guerra do Iraque, em 1991. O enredo de “Três Reis”, na verdade, é bem simples. Situado em março de 1991, quando a invasão norte-americana ao Iraque culmina com a rendição do país de Saddam Hussein, o filme mostra as aventuras vividas por três soldados (Mark Whalberg, Spike Jonze e Ice Cube). Acompanhados de um oficial (
George Clooney), os pracinhas decidem seguir as indicações de um mapa secreto, encontrado com um prisioneiro iraquiano, para “liberar” um depósito de barras de ouro, construídas com metal roubado do Kwait pelos guardas de Saddam.
“Três Reis” não é um drama de guerra, mas uma comédia de humor negro. Filmes de guerra normais quase sempre denunciam o belicismo de uma perspectiva épica, mostrando com solenidade os dramas humanos vividos pelos participantes desses conflitos. David O. Russell segue uma trilha oposta. Ele também denuncia a inutilidade e a estupidez da guerra, mas de uma perspectiva totalmente diferente, e nada convencional.
Em determinado momento do filme, por exemplo, os soldados dos EUA chegam a um vilarejo do Kwait ainda dominado por militares iraquianos. A população passa fome, apesar de haver lá um caminhão-pipa carregado de leite, confiscado pelos inimigos mais bem armados. Ocorre que os ianques não estão suando no deserto para ajudar ninguém. Eles estão interessados em roubar o ouro roubado. Afinal, ladrão que rouba ladrão tem sete anos de perdão, certo? E se alguém está morrendo de fome, o problema não é deles.
David O. Russell narra essa fábula em negativo com humor negro e espírito cínico de fazer inveja aos
irmãos Farrelly. A narrativa é ágil e cheia de lances surpreendentes, como uma discussão entre os pracinhas ianques que culmina com a explosão de uma vaca. Isso mesmo, você leu direito: uma vaca! O enredo do longa-metragem não tem nada de convencional, e possui inúmeros momentos insólito, tanto quanto um final completamente anticlimático e coerente com a narrativa apresentada. De alguma maneira, lembra um cruzamento de “M.A.S.H.” (uma influência óbvia) com “O Tesouro de Sierra Madre”.
“Três Reis” tem uma direção de fotografia dinâmica e moderna. Tom Siegel submeteu as imagens a uma lavagem especial para ficar com contrastes mais saturados, de esse tratamento deixou as cores estouradas, brilhantes. A câmera na mão e os cortes rápidos garantem um estilo mais documental. Enquanto isso, a trilha sonora eclética dá o toque final de modernidade, misturando Public Enemy com Bach, Eddie Murphy (sim!) e Beach Boys.
A canção que ilustra melhor o clima do filme é “In God’s Country”, do U2, usada para sublinhar a vastidão, o calor e a aridez do deserto iraquiano. Atente para o título da música, sem esquecer que o Iraque fica na região onde Cristo nasceu e pregou. Daí vem, também, o título do longa-metragem, que remete à fábula dos reis magos, viajantes estrangeiros que cruzaram o deserto iraquiano carregando um tesouro. “Três Reis” é um dos filmes mais inteligentes e corajosos dos últimos tempos, e merece ser redescoberto.
A Warner lançou o DVD do filme de David O. Russell no Brasil em 2000, quando as legendas em português ainda não eram artigo comum nos extras. Por isso, o ótimo disco, que tem imagens com o corte original (widescreen) e trilha Dolby Digital 5.1, ficam sem legendas no bom documentário que o acompanha, e também no comentário de áudio de Russell.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/tres-reis/

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