
Adrian Lyne surpreende e faz thriller visualmente rico, de trama inquietante e com protagonista perfeito
Por: Rodrigo Carreiro
Jacob Singer (Tim Robbins) vive um raro momento de paz no Vietnã. É 1971. Os soldados do seu pelotão fazem piadas, brincam entre si, até que um leve movimento atrás da linha de árvores dá início a um pesado bombardeio. Explosões e tiros espalham sangue para todos os lados. A carnificina é quase completa. Jacob consegue se esgueirar até as árvores, mas é atingido na barriga pela baioneta de um soldado inimigo. De repente ele acorda, sentado em um banco do metrô de Nova York. Ufa! Foi apenas um pesadelo vindo direto do passado. A violenta seqüência de guerra abre “Alucinações do Passado” (Jacob’s Ladder, EUA, 1990), um sombrio e inquietante thriller que ilustra à perfeição o modo como funciona uma mente esquizofrênica.
Este não é um filme de guerra, apesar da abertura. O tema do trabalho do diretor Adrian Lyne é o tênue limite entre sonho e realidade. O pesadelo recorrente de Jacob com o ferimento de guerra que lhe atingiu, alguns anos antes, é apenas o primeiro de uma série de eventos sinistros e inexplicáveis que dão a impressão, a Jacob, de que ele pode estar ficando louco. A cena seguinte do filme deixa isso evidente. Ainda atordoado após o sonho ruim, ele percorre ao vagões desertos. É madrugada. Jacob desce na parada seguinte e descobre que a única saída aberta encontra-se do lado oposto da linha férrea. Ele tenta atravessá-la e quase é atropelado por um trem. Aterrorizado, percebe que silhuetas com rostos desfigurados, como se fossem demônios, o observam de dentro dos vagões. Como explicar a visão bizarra? Ele realmente viu aquelas sombras macabras, ou apenas imaginou?
Essa última é uma questão fundamental em “Alucinações do Passado”. Toda a atmosfera do filme, que é dirigido com perícia por um surpreendente Adrian Lyne, funciona no sentido de deixar a platéia no escuro: as inexplicáveis visões de Jacob – aparições fantasmagóricas, sonhos premonitórios, acontecimentos impossíveis – são reais ou imaginárias? Ele não sabe; o espectador também não. Lyne investe em um visual pesado, escuro e de poucas cores, para transformar o seu filme em uma espécie de pesadelo gótico inspirado por pinturas macabras de Francis Bacon. O longa-metragem investiga com perícia os limites entre o que é real e o que é ilusão.
Às vezes, é difícil acreditar que “Alucinações do Passado” foi dirigido pelo mesmo homem responsável por bobagens como “Flashdance” e “9 ½ Semanas de Amor”. Aliás, os nomes atrás das câmeras não são muito animadores, já que o roteirista Bruce Joel Rubin é o mesmo do meloso “Ghost”. Não há dúvida de que ambos fazem, aqui, o melhor trabalho de suas carreiras. A concepção visual é rica, a trama é coerente e muito bem bolada, e o filme funciona como um todo, desde a abertura literalmente explosiva até o final impactante e melancólico.
Jacob é um personagem fascinante. Traumatizado com a guerra, ele retornou aos EUA outro homem. Dono de um doutorado em Filosofia e pai de duas lindas crianças de um casamento feliz, ele jogou tudo para o alto. Abandonou a família para casar com uma carteira, e o apartamento chique em Manhattan, onde vivia, para morar em um moquifo no Brooklyn, bairro de classe média baixa habitado por criaturas da noite. Quando o vemos pela primeira vez, no metrô, Jacob está lendo o romance “O Estrangeiro”, de Albert Camus. A leitura é uma informação importante para compreendermos o homem que ele é, suas motivações e seus traumas. Jacob é um personagem sólido. Infelizmente, o mesmo não se pode dizer de sua sanidade.
Interpretado por um Tim Robbins quieto, calado e com um sorriso contagiante, Jacob é um mistério que vai sendo revelado aos poucos. O filme, porém, é muito mais do que ele, e para compreender o que está se passando com a mente do sujeito é preciso saber “ler” as pistas enviadas pela exímia direção de Adrian Lyne. Os nomes bíblicos dos personagens (Jezebel, Gabriel, Sara, Paulo) informam ao espectador que há mais no quadro pintado pelo filme do que conseguimos ver. Mas o que seria esse mais? Como explicar as premonições, os fantasmas, as visões bizarras do protagonista? É tudo esquizofrenia ou há algum elemento sobrenatural por trás de tudo? Em determinado momento, Jacob começa a suspeitar que possa ter sido vítima de alguma experiência secreta com drogas durante a guerra. Papo de ex-combatente pirado ou realidade?
“Alucinações do Passado” é o tipo de filme cujo final acende uma luz diferente sobre tudo o que veio antes. De repente, o espectador vê que a resposta – surpreendente, brilhante! – estava diante dos olhos o tempo inteiro. Um dos personagens em particular, o médico quiroprático que atende Jacobs de tempos em tempos (Louis, interpretado por Danny Aiello, corrige com massagens o problema crônico nas costelas deixado pelo ferimento de guerra), é uma das chaves possíveis para desvendar o enigma, mas não a única.
Acredite: depois de uma sessão de “Alucinações do Passado”, você vai querer rever o filme para tentar refletir sobre tudo o que viu. A experiência fará o filme crescer ainda mais para os amantes de tramas complexas e diferentes. Se você assistiu a “O Operário”, gostou de “Clube da Luta” e de “Seven” (aliás, David Fincher parece ter bebido fundo da fonte de Adrian Lyne, inclusive na concepção visual dos seus filmes), “Alucinações do Passado” é um filme para guardar na estante.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/alucinacoes-do-passado/
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