sábado, 21 de novembro de 2009

Não Por Acaso


Trajetória de dois homens maníacos por controle é realização técnica empolgante de Phillipe Barcinski
Por: Rodrigo Carreiro

Philippe Barcinski é um cineasta obcecado com a idéia do acaso interferindo na vida das pessoas. O diretor enveredou pelo cinema fazendo curtas-metragens com temáticas sempre girando em torno desse conceito. Desde o início da carreira, também demonstrou excelente domínio técnico e narrativo. Todas essas características estão presentes em “Não Por Acaso” (Brasil, 2007), primeiro trabalho em longa-metragem de Barcinski. Trata-se de um filme sobre dois homens obsessivos por controle, vivendo em torres de marfim, cujas trajetórias se cruzam devido a um acidente de automóvel. A tragédia obriga ambos a fugir do isolamento e voltar a viver como gente normal.
“Não Por Acaso” parte da mesma idéia de “
Amores Brutos”, de Alejandro González Iñárritu, mas a narrativa extremamente técnica de Barcinski transforma o resultado numa história bem diferente. O filme tem algo da visão de mundo humanista de Krzysztof Kieslowski – convém lembrar que o grande autor polonês gostava muito de trabalhar com a idéia do caos, assim como o diretor paulista. Curiosamente, “Não Por Acaso” apresenta enorme semelhança com um longa-metragem do mesmo ano, o escocês “Marcas da Vida”, cuja personagem principal também vê o mundo filtrado através de câmeras de vigilância numa grande metrópole, e é tragada de volta à vida por acontecimentos sobre os quais não tem o mínimo controle. Outra referência é “O Quarto do Pânico”, suspense de David Fincher, cujos créditos forneceram óbvia inspiração para a abertura deste “Não Por Acaso”.
Aliás, essa abertura deixa evidente que São Paulo, sempre cinzenta e envelhecida, será mais do que mero cenário no filme, assumindo quase ares de personagem. Sobre longas tomadas do trânsito da cidade (difícil imaginar uma idéia que expresse melhor o conceito de caos, tão caro ao cineasta, do que o tráfego nas avenidas paulistanas), marcas de patrocinadores e créditos trafegam pelo ar, como se fossem automóveis suspensos. Aos poucos, descobrimos que aquelas imagens também estão sendo observadas por um dos dois personagens principais. Ênio (Leonardo Medeiros) é engenheiro de tráfego e passa os dias fazendo cálculos para modificar a sincronia dos semáforos, de forma a minimizar os constantes engarrafamentos que assolam a capital paulista.
Ênio é solteiro, mantém uma rotina rígida e solitária, não tem amigos. O filme sugere que o isolamento a que se auto-impõe é resultado de um divórcio traumático, um casamento fracassado que resultou em uma filha adolescente (Rita Batata) que ele não deseja conhecer. Em paralelo, o filme também nos apresenta a Pedro (Rodrigo Santoro), marceneiro especializado em construir mesas de sinuca. Pedro possui um bar modesto e é craque no jogo de bolas coloridas, embora ainda não tenha despontado como jogador profissional. Ele namora uma garota de classe alta, Teresa (Branca Messina), cuja família tem dificuldades em aceitar a relação. Apesar do bigodinho sacana e da camisa aberta do peito, Pedro não é um canalha. Ele ama Teresa. Só não quer freqüentar o mundo dela. Prefere a solidão do próprio quarto.
Apesar dos dois personagens extremamente bem construídos, delineados em belas seqüências silenciosas, o que se sobressai na narrativa de Barcinski é o esmero técnico. Deste
ponto de vista técnico, especialmente no que se refere a fotografia e montagem, o filme é inquestionavelmente brilhante. Isto fica especialmente evidente nas cenas de sinuca (no caso de Pedro) e nos planos gerais que captam o trânsito fluindo (Ênio). Nos dois casos, o diretor ilustra com perfeição os dois homens na plenitude do exercício da obsessão que nutrem por controle. Pedro desenha as jogadas futuras que fará em um caderno de bolso, treinando duro para reproduzi-las com perfeição. Ênio faz e desfaz congestionamentos com alguns cálculos matemáticos simples. Uma das tomadas, talvez a mais impressionante do filme, é um plano do alto que mostra um engarrafamento de várias ruas se formando, após o simples digitar de um número ordenado por Ênio.
Sob certo aspecto, fica bem claro que os dois personagens representam facetas do próprio diretor. Como eles, Barcinski também tenta evitar a interferência do acaso e controlar todos os detalhes do filme. O gosto de Barcinski pelo ato de manipular os elementos da gramática do cinema, controlando com mão de ferro as emoções do espectador, é evidente. Dá para sentir o dedo do diretor em cada tomada, em cada corte, em cada som, em cada gesto ou palavra dita pelos atores. Mesmo assim, como nas vidas de Pedro e Ênio, o acaso teima em se insinuar. Um filme nunca é exatamente aquilo que o diretor quer que ele seja (a não ser que o nome do diretor seja Alfred Hitchcock). Como seus dois personagens, Barcinski não consegue evitar as armadilhas do caos. E é aí que o excesso de técnica, apesar de brilhante, se revela como único defeito do longa-metragem.
Aquilo que normalmente é visto como virtude se transforma em problema simplesmente porque rouba o calor humano dos personagens, transforma a narrativa do filme em algo frio, inerte. Apesar dos dois personagens cumprirem jornadas idênticas, voltando a se embriagar com a vida ao vivo e em cores, “Não Por Acaso” não consegue ser totalmente bem sucedido na tarefa de envolver a platéia emocionalmente na história. Há uma barreira de gelo, uma barreira que o diretor tenta quebrar, talvez, com o uso quase ininterrupto de música. Junto com o final típico de uma novela das 20h, a música acaba dando ao filme um tom artificial, de melodrama. Talvez fosse essa a intenção de Philippe Barcinski, mas mesmo assim ela acaba roubando viço ao filme. O resultado final, apesar de muito bom, se torna mecânico demais e orgânico de menos.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/nao-por-acaso/

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