
Estreando na direção, Ben Affleck brilha com drama amargo travestido de thriller de investigação
Por: Rodrigo Carreiro
A superexposição na mídia devido ao turbulento affair com Jennifer Lopez acabou, por vias tortas, fazendo muito bem a Ben Affleck. Outrora candidato a astro de ação em Hollywood, o ator optou por passar um tempo longe dos holofotes e construir uma carreira mais low profile. Por isso, no seu projeto seguinte, ao invés de investir em alguma aventura descerebrada, ele preferiu co-escrever e dirigir um thriller pessimista, cheio de observações cortantes sobre o lado escuro da natureza humana. “Medo da Verdade” (Gone Baby Gone, EUA, 2007) é uma ótima adaptação cinematográfica para uma novela de mistério de Dennis Lehane, autor da matéria-prima para outro belo filme policial, o igualmente melancólico “Sobre Meninos e Lobos” (2003).
É a mão de Lehane que funciona como o elo de ligação entre os dois filmes, muito semelhantes em atmosfera e em temática, já que não há paralelo possível entre as carreiras de Affleck e do veterano Clint Eastwood, que dirigiu “Sobre Meninos e Lobos”. Nos dois casos, a história gira em torno das conseqüências do desaparecimento de uma criança, cuja investigação termina por fazer desmoronar a vida dos protagonistas. Aliás, se algum espectador desavisado colasse o epílogo da produção de Eastwood à abertura deste “Medo da Verdade”, exibindo os dois trechos em seqüência, talvez sequer notasse que eles pertencem a filmes diferentes. O tom tranqüilo e tristonho, aliado às imagens do cotidiano de bairros operários nos subúrbios de Boston (EUA), é exatamente o mesmo.
Na superfície, “Medo da Verdade” é um thriller clássico. A história segue uma investigação empreendida por um jovem casal de detetives particulares (Casey Affleck, irmão mais novo do diretor, e Michelle Monaghan, de “Missão Impossível 3”). Eles são contratados pelos tios de uma garota de quatro anos que mora na vizinhança pobre, e desapareceu sem deixar vestígios. Os parentes respeitam o trabalho da polícia, coordenado por um veterano (Morgan Freeman) e conduzido por um detetive aclamado (Ed Harris). Eles acreditam, porém, que os vizinhos detetives podem conseguir informações a que a polícia não teria acesso, porque conhecem as testemunhas e podem arrancar delas detalhes que elas não revelariam a desconhecidos.
Patrick (Affleck) e Angie (Monaghan) relutam, mas aceitam o caso porque sentem que se depender da mãe da menina (Amy Ryan), bêbada e drogada de carteirinha, a criança jamais será encontrada. O jovem casal parece tudo, menos o par de detetives durões que se espera em circunstâncias como esta. Eles dormem e trabalham numa casa escura e bagunçada. Patrick veste um moletom da Adidas, e sua silhueta magra sugere um cantor de rap desempregado. O fato de conhecer bem o submundo do bairro, porém, lhe dá uma vantagem considerável sobre a polícia. O que vem a seguir segue a estrutura clássica de um thriller policial: pistas falsas, descobertas surpreendentes, uma falsa conclusão, uma ou duas reviravoltas e um final doloroso como uma úlcera no estômago.
Sob a aparência de thriller policial, contudo, está o olhar atento para as idiossincrasias da conduta humana. Enquanto o casal investiga o caso até as raias da obsessão, tudo vai desmoronando ao redor deles – as testemunhas, os suspeitos, os parentes, os policiais e até mesmo o próprio casamento. Affleck dirige com segurança e, apesar de alguns deslizes menores (alguns diálogos expositivos que soam forçados, uma montagem que soa às vezes um pouco apressada), faz exatamente aquilo que se espera de um ator que senta atrás da câmera: abre espaço generoso para que o elenco faça seu trabalho com qualidade.
O cineasta privilegia tomadas longas e descarta, sempre que pode, closes e planos-detalhes, deixando que os atores conduzam a narrativa com tranqüilidade. O resultado é um desempenho coletivamente excelente. O irmão Casey está fantástico no papel principal, o rosto de bebê escondendo um jovem atento, cujo coração começa a dar sinais de endurecimento. O ar desanimado e ao mesmo tempo aflito de Michelle Monaghan encaixa com perfeição no papel da moça que sente o instinto maternal começar a aflorar, mas preferia que isto não acontecesse num mundo tão doentio. Freeman e Harris são duas apostas certas sempre. E Amy Ryan, atriz respeitada no teatro norte-americano mas desconhecida no cinema, brilha intensamente como a maluca mãe da garotinha desaparecida.
Curiosamente, a carreira do longa-metragem foi bastante prejudicada por um episódio semelhante que aconteceu de verdade: o sumiço da menina inglesa Madeleine McCann, numa praia de Portugal, em maio de 2007. Devido à avassaladora repercussão do caso na Europa e às semelhanças exageradas com o relato ficcional (a atriz que interpreta a criança também se chama Madeleine, e as duas mães são muito parecidas fisicamente), a estréia de “Medo da Verdade” foi adiada em vários países. Na Inglaterra, o filme sequer entrou em cartaz. Nos EUA, o marketing em torno da produção foi discreto o bastante para soterrar as chances de boas bilheterias. Uma pena, já que a estréia de Ben Affleck tem grande qualidade, e demarca uma guinada muito promissora na carreira do ex-namorado daquela atriz de derrière generoso… como é o nome dela mesmo?
http://www.cinereporter.com.br/dvd/medo-da-verdade/
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