
Estréia do ator Daniel Craig na pele do charmoso agente secreto atualiza o personagem para o século XXI em um filme musculoso
Por: Rodrigo Carreiro
Neste início de século XXI, a mais popular de todas as franquias cinematográficas envolvendo agentes secretos se viu em uma encruzilhada. A imagem habitual de James Bond, o espião inglês com licença para matar, sempre havia sido a mesma nos 40 anos anteriores – um sujeito charmoso e bonitão, sempre impecavelmente vestido com smoking e gravata-borboleta, segurando uma taça de dry martini numa mão e uma pistola com silenciador na outra. Não é preciso ser gênio para perceber que esta imagem pertence ao passado. Em pleno século XXI, James Bond precisava urgentemente de uma reinvenção radical. E é isto que “007 – Cassino Royale” (Casino Royale, EUA/Inglaterra/ República Tcheca, 2006) providencia para o herói.
Para compreender o problema por inteiro, é preciso analisar o contexto da série. Bond foi criado pelo escritor inglês Ian Fleming em 1953, quando o mundo era bem diferente. Duas superpotências disputavam uma corrida armamentista, nós associávamos um pouco provável fim do mundo à bomba atômica, o rock’n’roll nem havia sido criado, e se vestir de acordo com a moda era pôr um terno engomado. Em 2006, os Estados Unidos invadem o país que bem entendem sem pedir licença, a extinção da humanidade está ligada às nossas ações cotidianas (efeito estufa, lembram?), música para jovens é hip hop e metal, e moda tem a ver com piercings e tatuagens. Dry martini? Existe alguém na faixa de 20 anos que saiba o gosto desse drinque?
Como se não fosse suficiente, o próprio cinema se encarregou de revitalizar a fórmula dos filmes de espionagem, através de personagens inspirados em 007, mas devidamente atualizados para os novos tempos. É isto que são o desmemoriado Jason Bourne (“A Supremacia Bourne”) e o atlético Ethan Hunt (“Missão: Impossível”): homens jovens, com rostos bonitos e sex appeal, mas com defeitos. Eles não recorrem a traquitanas tecnológicas para escapar de uma ameaça; não têm medo de sujar a camisa e ir para o pau quando necessário. Foi pensando nisso que os produtores da série inglesa decidiram chamar o parrudo ator Daniel Craig para o papel, provocando uma enorme ondas de protestos dos fãs do 007 clássico. Os mais puristas reclamavam que um homem loiro não podia interpretar o agente assassino.
É difícil imaginar que alguém sério possa considerar a cor dos cabelos de um ator um fator determinante para sua escalação para um papel. Esta turma diminuta já odiava o longa-metragem antes mesmo de vê-lo. Se você integra o grupo, passe longe do filme. Mas se quer distância deste séqüito de seguidores radicais, alegre-se: “Cassino Royale” é para você. A produção atinge perfeitamente o objetivo de revitalizar a franquia, puxando James Bond para a realidade do século XXI sem, no entanto, deixar de lado as características que as produções protagonizadas pelo agente secreto sempre tiveram: belas mulheres, carros esporte de luxo, frenéticas seqüências de ação e muita ironia fina. Tudo isto adorna um filme brutal, físico, com seqüências de ação acrobáticas e um herói esperto e inteligente, mas também violento e cabeça-dura.
A história, lapidada pelo roteirista vencedor do Oscar Paul Haggis (“Crash – No Limite”), apaga o passado do espião londrino e o focaliza no início da carreira, realizando sua primeira missão após receber os dois zeros à frente do número sete (ou seja, a lendária licença para matar). A tarefa que a chefe do serviço secreto inglês, Madame M (Judi Dench), passa para o novato promissor é complicada: identificar a fonte única dos recursos internacionais que vêm financiando atividades terroristas. Para levar a cabo a missão, Bond investiga bandidos de segundo escalão em Madagascar, Bahamas e Miami, antes de seguir o rastro do dinheiro até uma competição milionária de pôquer num cassino luxuoso de Montenegro. Tudo isso após um classudo prólogo em preto-e-branco e uma extraordinária seqüência de créditos, feita com um estilo lúdico de animação que brinca com temas de cartas do baralho.
É curioso notar que a reinvenção de James Bond ocorre pelas mãos de uma equipe que já acompanha o personagem há muitos anos, detalhe que enfatiza ainda mais a necessidade que os produtores sentiam de atualizar o agente secreto. O diretor, Martin Campbell, já havia dirigido uma aventura de 007, “Goldeneye” (1995), de onde trouxe o fotógrafo Phil Meheux. Os roteiristas Neal Purvis e Robert Wade escreveram os dois últimos filmes do espião. David Arnold assina a trilha sonora de um longa-metragem do personagem pela quarta vez. Judi Dench repete o papel de Madame M. E mesmo assim, com tantos nomes familiares, a franquia exibe fôlego renovado. Bom sinal.
Com orçamento reduzido à metade do que vinha sendo gasto nos últimos filmes da série (US$ 72 milhões), Campbell encontrou uma forma de cortar custos justamente nas seqüências de ação, fazendo que elas sejam poucas (e, porém, longas, o que valoriza bastante os momentos de maior adrenalina). O cineasta investe em um estilo mais orgânico, todo baseado em edição veloz e muita movimentação de câmera, com pouco uso de computação gráfica. A técnica se revela eficaz desde a primeiríssima cena de ação, quando Bond precisa perseguir um bandido pelas ruas caóticas de Madagascar, passando por uma construção e acabando dentro de uma embaixada. A seqüência é musculosa e alucinada, passando perfeitamente à audiência o novo estilo do agente secreto, mais brutal e físico do que charmoso e intelectual.
A escalação de Daniel Craig no papel principal encaixa à perfeição no papel. O ator possui o rosto anguloso e os olhos apertados de um boxeador, bem como um porte físico avantajado, o que torna perfeitamente críveis as peripécias mais audaciosas do agente secreto – se alguém pudesse mesmo fazer o que ele faz, certamente teria um corpo musculoso. Como se não bastasse isso, Craig possui boa desenvoltura dramática e se sai bem também na parte romântica da trama (um filme de James Bond não estaria completo sem uma Bondgirl decente, e aqui temos nada menos do que duas, a italiana Caterina Murino e a francesa Eva Green, ambas belíssimas). É interessante notar, ainda, que o ator sempre parece meio desconfortável dentro de um smoking clássico com gravata-borboleta, e isto é bastante adequado para o objetivo primário do longa-metragem, que é reconstruir a imagem de James Bond para o público jovem do século XXI.
No final das contas, o diretor Martin Campbell agradou a gregos e troianos, já que conseguiu transformar 007 em um agente secreto moderno, espanando o cheiro de mofo que a franquia começava a exalar, mas sem abrir mão do terno negro e do dry martini que fazem parte da imagem clássica do personagem. Definitivamente, James Bond não é um tiozinho que não dialoga mais com a “galera”. Em um dos melhores e mais bem bolados diálogos de “Cassino Royale”, Bond solicita uma dose caprichada de sua bebida favorita a um garçom, e trata de explicar a ele como preparar um dry martini com vodka, uma audácia que escandalizaria puristas. Obviamente, o alvo não está no barman, mas nos jovens sentados do lado de cá da tela – eles precisam saber que James Bond bebe a mesma coisa que eles, ora bolas! Este é um exemplo de como “Cassino Royale” combina tradição e modernidade para se transformar numa boa aventura de espionagem.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/007-cassino-royale/
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