sábado, 21 de novembro de 2009

Os Infiltrados


Scorsese faz um brilhante exercício de cinema brutal em forma de thriller/tragédia denso, mas pouco original
Por: Rodrigo Carreiro

O mesmo filme pode ser um exercício brilhante de cinema brutal e, ainda assim, deixar um gosto de decepção da boca do espectador? “Os Infiltrados” (The Departed, EUA, 2006), de Martin Scorsese, prova que sim, este paradoxo é possível. Saudado de forma quase unânime pela crítica internacional como a primeira obra-prima do diretor desde “Os Bons Companheiros” (1990), o longa-metragem tem tudo o que um thriller precisa ter: é tenso e violento, elegante e meticulosamente construído, tem o realismo vulgar e os típicos diálogos “de rua” de Scorsese, dois protagonistas fascinantes, coadjuvantes de peso dramático indiscutível, interpretações calibradas e outras virtudes. Uma produção impecável, mas infelizmente pouco original.
Para a minoria de cinéfilos que já teve a oportunidade de checar o título asiático “
Conflitos Internos” (2002), o filme de Scorsese empalidece. Não se trata de plágio, pois os créditos estão devidamente colocados – “Os Infiltrados” é oficialmente uma refilmagem da mesma história. Aliás, quando observada especificamente pelo aspecto dramático, uma excelente refilmagem. Tem o primeiro ato devidamente ampliado, de forma a reforçar a psicologia dos dois personagens e tornar mais densas suas histórias individuais, suas motivações, seus passados obscuros, seus demônios pessoais. O objetivo, bastante claro, é expandir os conflitos morais sugeridos no enredo original para além do puro thriller, até atingir o nível de uma moderna tragédia urbana de tintas épicas. Neste sentido, auxiliado pelo roteirista William Monaghan, Martin Scorsese fez um bom trabalho.
O primeiro ato, aliás, não foi expandido apenas para realçar o aspecto moral da história, mas funciona como arcabouço perfeito para que o cineasta possa imprimir no filme suas marcas pessoas. Está tudo lá: o ambiente vulgar, ríspido e violento dos subúrbios de uma metrópole, o vocabulário “boca suja”, as obsessões com sexo (o personagem de Jack Nicholson) e religião (o menino coroinha cujos amigos são pilantras), a trilha sonora repleta de gemas pop dos anos 1960 e 70 retiradas da coleção particular do diretor (“Gimme Shelter”, dos Rolling Stones, bate ponto pela terceira vez em um longa de Scorsese, acompanhada pela obscura e genial “Let it Loose”, também dos Stones, e por um cover de “Confortably Numb”, do Pink Floyd).
Ao contrário dos habituais filmes de gângsteres do diretor, a ação não se passa em Nova York, mas na comunidade de descendentes irlandeses radicados em Boston. A alteração foi realizada para deixar os personagens mais críveis, já que os italianos distribuídos nos subúrbios da Grande Maçã prezam por valores diferentes. Lá, a instituição familiar exerce grande influência nos jovens (quem viu a trilogia “O Poderoso Chefão”, de Coppola, sabe muito bem disso), e os laços de família são profundamente estimados. Esta característica tornaria sem sentido um personagem como Billy Costigan (Leonardo DiCaprio), rapaz pobre nascido no meio de gângsteres que, na adolescência, decide se afastar por completo dos parentes, tornando-se um policial.
Billy cursa a Academia de Polícia, mas acaba recrutado por dois oficiais, Queenan (Martin Sheen) e Dignam (Mark Whalberg), para uma missão especial. Devido aos laços familiares com o submundo, ele será um agente da polícia infiltrado entre os homens de Frank Costello (Jack Nicholson), maior mafioso local. O outro protagonista tem a mesma origem humilde de Billy, mas segue o caminho oposto: Colin Sullivan (Matt Damon) entra na polícia a mando de Costello, para informar os bandidos sobre as ações dos detetives. Quando fica claro para ambos os lados que há alguém passando informações aos adversários, a situação fica difícil para Billy e Colin – cada um deles, curiosamente, recebe a missão de descobrir a
identidade do infiltrado. Sem saber, os dois ainda dividem a mesma mulher, a psicóloga Madolyn (Vera Farmiga).
A jornada percorrida pelos dois personagens principais é bem semelhante à de Henry Hill, o herói (ou anti-herói) de “Os Bons Companheiros”, filme com o qual “Os Infiltrados” realmente guarda muitas semelhanças. Durante os anos em que permanecem infiltrados nas fileiras dos inimigos, Billy e Colin são obrigados a lidar com sentimentos ambivalentes, como lealdade, confiança e traição. Ambos são atores interpretando durante 100% do tempo, e ainda por cima em ambiente hostil e durante um período de tempo que abarca vários anos. Evidentemente, a situação deixa os dois com os nervos à flor da pele, um problema especialmente difícil para um cara de pavio curto como Billy.
Scorsese se sai muito bem durante esta primeira metade, em que pode dedicar bastante tempo para definir cada personagem, inclusive os coadjuvantes. Observe, por exemplo, o instigante paralelo criado entre os personagens de Jack Nicholson (um tarado insaciável) e Matt Damon (impotente), sugerindo que a tensão e o sentimento de culpa do segundo interferem com sua vida sexual de uma forma que o primeiro sequer conhece. Uma grande sacada que apenas os espectadores mais ligados vão reconhecer.
Os atores aproveitam a oportunidade para entregar ótimos desempenhos – Jack Nicholson, em particular, está tremendamente à vontade no papel do arqui-vilão da história. Nesta parte inicial, Scorsese se beneficia do enorme conhecimento sobre a vida de gângster que acumulou nos filmes que já dirigiu sobre o tema, e repete o que sabe fazer melhor: desenhar uma tragédia clássica sobre a vida no submundo de uma grande metrópole, com bastante realismo (os tiroteios e cenas de pancadaria parecem tirar sangue de verdade) e linguagem vulgar (a palavra “fuck” é repetida 237 vezes!).
É a partir da metade da produção, mais especificadamente a partir da cena em que policiais e ladrões descobrem a existência de gente inimiga infiltrada nos respectivos lados, que os problemas começam a aparecer. Em resumo, Scorsese parece acometido de preguiça, e segue fielmente a história original, repetindo situações dramáticas, locações, enquadramentos de câmera e até mesmo detalhes narrativos utilizadas pelo filme chinês para contá-la.
Todas as cenas-chave de “Conflitos Internos” foram mantidas praticamente inalteradas. Se isto fosse feito por um diretor menos renomado, não haveria problema. Um novato teria obrigação de sentir orgulho por assinar um remake de tamanha qualidade. Quando se considera a estatura do cineasta envolvido, porém, a coisa muda de figura. Martin Scorsese é um gigante, um dos maiores diretores de todos os tempos. De profissionais do calibre dele não se pode esperar nada menos do que 100% de originalidade. E isto, infelizmente, não é o que se pode conferir em “Os Infiltrados”.
Na verdade, quando Scorsese anunciou que faria o remake de um filme de gângsteres oriental, a comunidade cinematográfica se agitou. Muita gente não entendeu como um cineasta do porte dele se rebaixaria a fazer uma refilmagem. Por isso, imaginou-se que ele apenas aproveitaria o argumento original, engenhoso e complexo, para construir uma obra inteiramente original. Mas ele só fez isso no primeiro ato. No restante do filme, Scorsese seguiu rigorosamente a mesma progressão dramática, do começo ao final, iniciando a história com flashbacks da infância e do treinamento policial dos dois protagonistas, e depois avançando para o presente.
Além das cenas, Scorsese também clonou cenários. Um dos encontros mais tensos entre dois personagens ocorre dentro de um cinema. Outra seqüência importante acontece sobre a cobertura de um prédio, mesmo local onde ocorre o clímax do filme. As duas locações são idênticas às utilizadas no longa-metragem de Hong Kong. Como se não bastasse, até mesmo na mise-en-scéne (a organização visual dos elementos dentro da imagem de uma cena), uma das grandes virtudes de Scorsese desde sempre, recorreu-se à fonte original. Observe, por exemplo, durante um assassinato a tiros que ocorre dentro de um elevador, a posição em que cai o corpo morto de um personagem – a cena é idêntica, até mesmo nos enquadramentos escolhidos, à exibida no filme chinês.
Claro que a maior parte dos espectadores não vai reconhecer tantas semelhanças, por uma razão muito simples: “Conflitos Internos” é um thriller empolgante, mas quase desconhecido. Já o longa-metragem de Scorsese se tornou, após uma passagem vitoriosa pelas bilheterias dos Estados Unidos, o maior sucesso de toda a carreira do cineasta, faturando US$ 26 milhões no primeiro final de semana em cartaz e ultrapassando a cifra de US$ 100 milhões no total. Além disso, alcançou 92% de aprovação no Rotten Tomatoes, banco de dados que compila críticas escritas por mais de 500 especialistas em todo o mundo. Não há dúvida de que “Os Infiltrados” é, sim, cinema de primeira qualidade. O que falta ao longa-metragem de Scorsese é originalidade, característica profundamente importante quando se fala de um diretor fundamental para a história do cinema contemporâneo.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/infiltrados-os/

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