
Distanciamento crítico reabilita filme injustamente pisoteado do grande Martin Scorsese
Por: Rodrigo Carreiro
Não há dúvida: o distanciamento crítico provocado pelo tempo faz bem ao cinema, reabilitando filmes injustamente pisoteados e lançando ao limbo obras superestimadas na época em que foram lançadas. O caso de “Cassino” (Casino, EUA, 1995), de Martin Scorsese, é positivo. Após receber uma saraivada de críticas negativas durante a temporada em que foi exibido nos cinemas, o longa-metragem de quase três horas foi reabilitado aos poucos pelos fãs. Se não chega ao nível de obra-prima como “Touro Indomável” (1980) ou “Taxi Driver” (1976), os trabalhos mais geniais de Scorsese, “Cassino” é um trabalho digno, longe de ser uma mancha na carreira do grande diretor norte-americano.
A bem da verdade, a quase totalidade dos comentários desabonadores da obra tomou como justificativa para isto apenas uma questão: a semelhança do título com “Os Bons Companheiros” (1990), o filme de gângster anterior do cineasta. De fato, há muita coisa em comum: a narração em off hiperativa e bem-humorada, a linguagem pop da edição dinâmica, a estética elegante e sofisticada da concepção visual. O que muita gente não viu, ou não quis ver, é que estas semelhanças são absolutamente intencionais, pois nasceram na origem dos dois projetos, que está na mesma pessoa – o roteirista Nicholas Pileggi.
O próprio Scorsese faz mais do que admitir a semelhança: ele afirma abertamente que a intenção, ao aceitar assumir a direção de “Cassino”, era criar uma espécie de continuação informal de “Os Bons Companheiros”. Realizar a tarefa não foi difícil, considerando que Scorsese tinha não apenas o mesmo roteirista, mas também parte do elenco (Robert De Niro, Joe Pesci) e da equipe técnica (a montadora Thelma Schoonmaker) pinçados do longa anterior. O time se esmerou em reproduzir o ritmo ágil e a linguagem vulgar e ao mesmo cínica, com diálogos mordazes e uma narração repleta de tiradas irônicas que mais parecem slogans publicitários.
Há diferenças, claro. Uma delas, talvez a principal, é o ângulo de abordagem. Enquanto “Os Bons Companheiros” oferecia à platéia um panorama complexo das relações humanas dentro de uma intrincada organização mafiosa, vista de dentro, “Cassino” tem uma estrutura mais épica, que retrata crescimento, apogeu e queda de um jogador profissional, tendo como pano de fundo os panoramas multicoloridos de néon da cidade de Las Vegas. O aspecto sofisticado do visual, aliás, é um dos pontos altos do filme, que apresenta uma recriação perfeita do mundo do jogo de alto luxo. Dos hotéis e mansões aos figurinos impecáveis, a direção de arte se esmera em recriar à perfeição o universo de plástico freqüentado pela fauna rica de jogadores que habita este planeta exótico.
A fotografia de Robert Richardson explora muito bem os contrastes de luz – a iluminação artificial nos interiores e o sol ofuscante das ruas – para contrapor as duas faces da vida de Ace Rothstein (De Niro), o protagonista. Ele é um jogador genial que assume a gerência de um cassino para a máfia italiana de Las Vegas. Ace conhece bem a sujeira embaixo do tapete, e sabe controlá-la perfeitamente, mas para isso acaba dirigindo sua compulsão de jogador para o aspecto pessoal de sua vida. Ele é tão vaidoso que trabalha no escritório de cuecas, deixando as calças penduradas no armário para não desfazer os vincos impecavelmente engomados.
Como de hábito, o trabalho de Scorsese com os personagens é excepcional; a galeria de coadjuvantes dá vida ao filme, e tridimensionalidade a Rothstein. Os coadjuvantes principais são dois. O violento e imprevisível gângster Nicky (Pesci) é um baixinho invocado que se aproveita da amizade com Ace para faturar alto nos cassinos, embora sua presença possa ser um problema no futuro, pois ele tem dificuldades de saber quando parar. Já a prostituta de luxo Ginger (Sharon Stone, no melhor papel da carreira) é a mulher fatal por quem o jogador se apaixona. Lidar com ela é pedir para se queimar, e Ace sabe disso, mas não pode fazer nada. Está apaixonado, e já que não pode ser compulsivo no jogo, o é na paixão.Todos os elementos para uma tragédia vulgar tipicamente americana, regada a dólares e cocaína, estão postos na mesa desde os belíssimos créditos criados pelo lendário Saul Bass (“Psicose”).
O trabalho de montagem, que remete diretamente a “Os Bons Companheiros”, também é muito bom. Thelma Schoonmaker recorre a todo tipo de artifício – frames congelados, imagens aceleradas, fusões criativas – para acelerar o ritmo da história, o que agrega bastante dinamismo ao filme, especialmente na primeira hora de projeção, quando os personagens são apresentados. No entanto, é justamente através da edição que se percebe o maior defeito do filme, que é ser longo demais. Na segunda metade, a montagem já se tornou cansativa, o que evidencia o clímax lerdo e pouco inspirado. Um filme energético como “Cassino” deveria explodir como um balão de aniversário, e não murchar melancolicamente como um saco de papel furado. Um problema no meio de tantas virtudes, porém, não faz deste um filme ruim.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/cassino/
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