terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Vida Dos Outros


Sensível estréia de cineasta alemão traduz em imagens processo de humanização de um carrasco
Por: Rodrigo Carreiro

O sensível drama “A Vida dos Outros” (Des Leben der Anderen, Alemanha, 2006) guarda uma semelhança com outro filme alemão de sucesso, o polêmico “A Queda”, que retratou em 2004 os últimos dias do alto escalão nazista na II Guerra Mundial. Embora se passe em um período histórico diferente (mas igualmente traumático para o povo alemão), a obra de estréia do diretor Florian Henckel von Donnersmarck também procura humanizar vilões históricos. Saem os alto oficiais da SS e do Exército de Hitler, entram os espiões burocratas da Stasi, a temida polícia secreta da antiga Alemanha Oriental, nos anos 1980.
A Stasi era o braço político-ideológico da polícia da Alemanha comunista, nas quatro décadas em que parte de Berlim esteve sob domínio da União Soviética. O organismo esteve encarregado de monitorar as tentativas de fugas para o território capitalista do país, trajeto proibido para todos os alemães orientais entre 1950 e 1989. Para isso, montou uma ampla rede de escutas clandestinas, além de pagar centenas de milhares de pessoas para dedurar os amigos. Atualmente, calcula-se que a Stasi prendeu mais de 75 mil pessoas acusadas de manter
contato irregular com o Ocidente. Esta tensa situação fornece o pano de fundo de uma história sensível sobre um espião devotado ao trabalho e sem vida pessoal que, por razões tão insondáveis quanto o espírito humano, se sensibiliza ao receber uma tarefa que, ele pensava, seria apenas mais um trabalho comum.
A idéia para o filme surgiu em 1997, quando von Donnersmarck era um estudante de cinema passando por um bloqueio criativo. Ele leu em algum lugar que Lênin gostava muito da música de Beethoven, mas não a ouvia, porque tinha medo de que a emoção domasse o espírito agressivo que a revolução na Rússia exigia dele. A partir deste fragmento de informação – uma variação do ditado segundo o qual a arte humaniza as pessoas – o então estudante começou a escrever um roteiro. Ele levou oito anos para transformar a história em filme, mas o esforço valeu a pena. “A Vida dos Outros” não apenas fez sucesso de público e crítica na Alemanha, como também faturou o troféu de melhor longa do continente em 2006 no European Film Awards, garantindo para si uma carreira internacional de prestígio.
O sucesso é merecido. Com um orçamento apertado de apenas 1,7 milhão de euros – algo como US$ 2 milhões, quantia absolutamente ridícula para os padrões de Hollywood – o diretor novato foi capaz de criar, com uma narrativa sóbria e sem afetações, uma bela história de redenção pessoal. Vale ressaltar que o tema espinhoso pode dar a impressão de um filme político, o que não é bem verdade. Apesar de ter se esmerado para construir meticulosamente o ambiente ideológico repleto de tensão da época, von Donnersmarck jamais perdeu o foco da história que queria contar. E não era uma história política, mas uma história de um homem, gente de carne e osso, o documento cinematográfico da jornada pessoal de um sujeito violento e insensível que, sem ter palavras para explicar como, começa um dia a sentir.
Este sujeito é Gerd Wiesler, o agente XX/7 (Ulrich Mühe, em excelente atuação). Wiesler é o espião perfeito: solitário, sem família, inteligente, de fria eficiência na tarefa de torturar e extrair informações de quem não deseja dá-las. Ele é tão bom no que faz que dá aulas para candidatos a agentes secretos. Por isso, é escolhido para monitorar um casal de artistas que a Stasi considera perigosos, o dramaturgo Georg Dreyman (Sebastian Koch) e a atriz Christa-Maria Seland (Martina Gedeck). Wiesler planta uma série de microfones e microcâmeras no apertado apartamento dos dois e se encarrega de monitorar pessoalmente todas as palavras e ações da dupla. Aquelas cinzentas, longas e impessoais sessões de espionagem, contudo, fazem germinar algo colorido na alma do espião. Wiesler não sabe explicar o quê. Aliás, ele nem mesmo tem alguém com quem conversar sobre isso – não possui amigos nem familiares.
Toda a parte visual recebeu atenção especial do diretor estreante. A cenografia e a direção de arte são simples e modestas, mas competentes, como comprovam boa parte das tomadas externas e internas que se passam no ambiente burocrático da Stasi – elas foram filmadas no verdadeiro prédio da polícia secreta em Berlim, hoje convertido em museu. Além disso, a
fotografia acerta ao iluminar os longos corredores da Stasi com uma sinistra luz fria, amarelo-azulada, que dá aos rostos dos espiões e prisioneiros uma tonalidade impessoal, e uma atmosfera quase espectral.
É importante observar que o filme talvez atinja um resultado tão interessante, aos olhos da platéia, porque elabora um reflexo curioso da própria jornada do espectador. Em outras palavras, a platéia encara uma experiência virtualmente idêntica à do personagem principal. Como ele, nós também passamos 137 minutos espreitando a intimidade de alguém que não sabe estar sendo observado, e mudamos lentamente de opinião sobre este alguém. O melhor de tudo é que a narrativa é sólida, algo sempre elogiável para um estreante, e jamais cede à tentação de cair no melodrama – uma vantagem que fica mais do que evidente no epílogo contido e, paradoxalmente, emocionante.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/vida-dos-outros-a/

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