
Por: Rodrigo Carreiro
Sertão de Pernambuco, agosto de 1942. Um jovem comerciante alemão dirige um caminhão pelas estradas poeirentas do interior nordestino, vendendo aspirinas em vilarejos miseráveis. Ao mesmo tempo, um sertanejo sisudo sonha em conseguir dinheiro suficiente para comprar uma passagem e ir tentar a sorte a cidade grande. O encontro dessas duas almas marginais dá a tônica de “Cinema, Aspirinas e Urubus” (Brasil, 2005), o pequeno e delicado drama sobre a amizade que fez sucesso no Festival de Cannes 2005.
O filme, que põe o nome do diretor Marcelo Gomes no mapa, ultrapassa o clichê de estréia promissora, pois é obra madura, auto-consciente de suas modestas pretensões, que empolga sobretudo por apontar um caminho que, apesar de antigo, se mostra inovador, pois andava esquecido: o filme barato, simples, sem malabarismos estéticos ou efeitos especiais, calcado pura e simplesmente na relação espontânea entre duas pessoas comuns. Em pleno século XXI, é bom perceber que um filme tão frugal, tão barato e despido de vaidades, ainda é capaz de cativar.
O diretor Marcelo Gomes exercita, aqui, uma capacidade rara de observar o ser humano com carinho e bom-humor. Faz isso, conforme ele mesmo enfatiza, com uma única preocupação: evitar os estereótipos, os clichês, em todos os níveis. É assim já na construção dos personagens, aparentemente desleixada pela estética tosca que percorre o trabalho, mas certamente meticulosa. Johann (Peter Ketnath) é o alemão viajante. Ele não tem nada do estereótipo que as pessoas associam aos alemães. É simpático, jovial e alegre, e suas ações demonstram que ele confia naturalmente nas pessoas.
Ranulfo (João Miguel), ao contrário, não tem a cordialidade ou a ingenuidade que se espera de um sertanejo queimado pelo sol. Amuado, sempre desconfiado, tem a sisudez estampada no olhar oblíquo e na postura corporal. Uma amizade entre essas duas figuras, opostas não apenas na personalidade mas sobretudo na cultura, seria algo improvável. Quando Ranulfo pede uma carona a Johann, a empatia não é imediata. Tampouco existe antipatia; apenas indiferença e uma certa dose de curiosidade. Diante de cada um, está a figura do “outro” enigmático, essa figura de linguagem tão discutida por pós-estruturalistas. “Cinema, Aspirinas e Urubus” é sobre isso – a amizade nascendo da diferença. Mas esqueça o vocabulário requintado, pois o filme não tem nada disso.
“Cinema, Aspirinas e Urubus” tem sido descrito como um road movie nordestino. Há, sim, esse caráter andarilho na produção, pois a dupla, depois de entrosada, viaja de cidade em cidade pelo deserto calorento do sertão. Mas o movimento não comanda o ritmo do filme. É a passagem do tempo que interessa a Marcelo Gomes. E isso acontece naturalmente. O trabalho tem ritmo próprio, tranqüilo, não força a barra. Nós espectadores, jamais sentimos que há a mão de um cineasta na condução da trama ou dos personagens. Eles têm vida própria. São de carne e osso.
Aos poucos, eles percebem – e nós, do outro lado da tela, também – que precisam um do outro. Johann deseja espantar a solidão com uma companhia mais constante (e a abertura do filme, com uma série de planos de ações cotidianas do viajante em silêncio absoluto, enfatiza essa necessidade). Ranulfo quer ganhar algum dinheiro, que o permita viajar para o Recife. Ambos estão em fuga: Johann, da guerra; Ranulfo, da seca. Além disso, o último fica fascinado com o ganha-pão do gringo. Johann vende aspirina. Para convencer os matutos a comprar, ele projeta comerciais em cinemas improvisados no meio da rua.
As projeções em 16mm são uma declaração de amor, o único momento do filme em que percebe-se a intromissão do cineasta naquelas duas vidas marginais. O cinema mambembe é filmado com indisfarçável carga de fascínio, uma energia nostálgica muito forte. Nesses momentos, é impossível não lembrar da relação afetuosa que o italiano “Cinema Paradiso” estabelecia, na sua memória sobre o cinema em uma cidade do interior da Itália. Mas o filme pernambucano não permite qualquer outro paralelo com a obra de Giuseppe Tornatore, pois recusa firmemente o melodrama.
O tom geral é sóbrio, silencioso e espontâneo, bem sertanejo, como se o sol implacável tornasse tudo mais lento. Essa característica pode até desagradar à platéia de um multiplex, pelo ritmo lento e pela ausência de picos dramáticos que dariam à história a estrutura clássica em três atos dos filmes mais comerciais. Não há nada disso aqui. “Cinema, Aspirinas e Urubus” é incomum, um filme raro que conquista pela simpatia e despretensão.
Há que se destacar também a excelente performance dos dois atores. Peter Ketnath e João Miguel estão impecáveis, em atuações naturalistas, sem arroubos dramáticos ou gestos teatrais. Convencem perfeitamente na pele da dupla exótica. Há duas seqüências muito boas que ilustram bem a maneira como ambos encaixaram nos respectivos personagens. Uma é um monólogo noturno de Ranulfo sobre a dureza da vida na cidade grande. A outra, talvez o momento mais belo do filme, é uma bebedeira em que os amigos encenam uma “luta” entre os dois, caso se encontrassem na guerra, em lados opostos.
“Cinema, Aspirinas e Urubus” é um caso singular no cinema brasileiro contemporâneo, pois ao mesmo tempo em que cria laços com certas características dos novos autores, em outros momentos se afasta do que se convencionou chamar de “cinema da retomada”. O filme se aproxima porque enfoca a vida marginal, na periferia, onde estão as pessoas que os cineastas consideram mais interessantes. Mas se afasta porque o tom geral é otimista, sem traços de melodrama e com comentários sociais apenas sutis, secundários.
O filme de Marcelo Gomes estabelece, ainda, um diálogo com a primeira fase do Cinema Novo, promovendo um retorno à temática rural, do sertanejo como símbolo da identidade cultural do Brasil. Em termos estéticos, traça a mesma aproximação através do excelente trabalho de fotografia de Mauro Pinheiro, que fotografa o sertão com a luz abrasiva, estourada, que é marca registrada da região. Em “Cinema, Aspirinas e Urubus”, o céu e terra são brancos, queimados de sol, como no clássico “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Certíssimo.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/cinema-aspirinas-e-urubus/
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