
Drama suburbano usa fórmula Sundance e melodrama carregado para criticar a instituição familiar
Por: Rodrigo Carreiro
Uma das características do cinema feito nos Estados Unidos a partir da segunda metade dos anos 1990 é a crítica à instituição familiar. A vitória de “Beleza Americana” no Oscar de 2000 funcionou como uma espécie de chancela deste filão cinematográfico – era a permissão oficial de Hollywood para que cineastas de todas as tendências baixassem o pau na família. Praticamente todos os filmes com alguma ambição artística passaram a seguir o slogan publicitário do longa-metragem de Sam Mendes (“olhe mais de perto”), enfocando habitantes dos subúrbios de classe média alta. Via de regra, os personagens destas obras são gente com aparência normal, mas cheia de sujeira embaixo do tapete. “Pecados Íntimos” (Little Children, EUA, 2006) é legítimo representante desta escola de cinema auto-importante e metida a séria.
O filme de Todd Field (“Entre Quatro Paredes”) é cria de Sundance, o festival de cinema independente mais importante dos EUA. Não é segredo para ninguém que Sundance gerou certo tipo de filme, ligeiramente à esquerda de Hollywood, que já se institucionalizou e virou fórmula – e uma fórmula que ano após anos parece mais batida, mais cansada. “Pecados Íntimos” bebe diretamente na fonte de “Beleza Americana”, mas também vai buscar inspiração na obra de um xará do diretor, Todd Solondz, incorporando à história um olhar distante, impassível, até certo ponto cruel para com os personagens. Field, porém, não vai até o fim na proposta de lançar uma visão implacável à família do subúrbio. O “toque Solondz” é diluído, calibrado para o público médio, e desemboca em um final lamentável de tão moralista.
É verdade que há elementos de destaque na trama regida por Todd Field, a começar pelo elenco homogêneo e excelente. A história gira em torno de um caso extraconjugal entre dois habitantes do subúrbio rico de uma cidade não identificada. Sarah (Kate Winslet) é a entediada e jovem esposa de um executivo ausente (Gregg Edelman). Sem trabalho, ela passa os dias cuidando do filho pequeno, e conhece Brad (Patrick Wilson) durante um passeio no parquinho. O rapaz bonitão é um advogado que não consegue passar no exame da Ordem dos Advogados, e por isso não exerce a profissão, tomando para si o papel de babá de um lar abastado, chefiado na prática pela publicitária Kathy (Jennifer Connelly). Você pode imaginar sem muito esforço o que acontece quando duas pessoas bonitas, jovens, com dinheiro e tempo livre se conhecem. O caso que surge entre os dois é totalmente crível.
Os dois personagens principais são sólidos, consistentes. O mesmo não pode ser dito dos demais cidadãos que gravitam ao redor deles. Os respectivos casais, por exemplo, participam de pouquíssimas cenas, e jamais são desenvolvidos a contento. Além deles, há outros cidadãos aparentemente sadios, mas com segredos escondidos. Larry (Noah Emmerich), por exemplo, é um policial meio histérico, que nunca conseguiu superar um incidente trágico do passado profissional. Ronald (Jackie Earle Haley), homem de meia-idade que vive sozinho com a mãe, é a própria imagem da fragilidade, embora espalhe pânico pela vizinhança por ter sido preso sob a acusação de pedofilia. Vez por outra, o filme se desvia da história principal para contar um pouco do drama particular de cada coadjuvante.
O personagem do pedófilo é particularmente curioso. “Pecados Íntimos” é um dos vários dramas contemporâneos a se ocupar do tema (“O Lenhador”, “MeninaMá.com”, “Felicidade”). Ele comprova definitivamente como a indústria cinematográfica tem tentado ultimamente ser menos maniqueísta, sempre procurando relativizar os personagens maus, outrora vilões desalmados e sem qualquer qualidade redentora. Ronald é um pedófilo real, sim, mas suavizado pela imagem de sujeito pacato, cujos olhos parecem implorar por perdão. Fica claro que Hollywood tenta, cada vez mais, compreender e aceitar os “diferentes”.
Toda a história é permeada por uma curiosa narração em off, que acaba se revelando a melhor coisa do filme. A narração destoa em tom e foco do que normalmente se faz em filmes norte-americanos. A voz, máscula e super-grave, parece pertencer a um Deus gozador. É onipresente e irônica, antecipando e comentando fatos que os personagens ainda vão viver, com cinismo desconcertante, bem na linha de “Dogville” (Lars Von Trier) ou, voltando mais para trás, “Barry Lyndon” (Stanley Kubrick). O off é um recurso batido e que por vezes traz problemas, e embora neste caso ele não se justifique, o formato incomum acaba adicionando um molho diferente ao filme. Funciona.
As qualidades de “Pecados Íntimos” são, contudo, sufocadas por um final incrivelmente moralista, patético mesmo, que ainda por cima recorre a um recurso dramatúrgico artificial, ao procurar amarrar todas as pontas soltas ao mesmo tempo. Ou seja, os acontecimentos retratados na tela levam a um conjunto de acontecimentos interligados, que por sua vez conduzem a um inacreditável acerto de contas coletivo. É puro melodrama banal em um filme que até então se sustentava nas próprias pernas, apesar de o quadro geral jamais deixar de soar como as sobras de um roteiro de Todd Solondz. Claro, é um final talhado para o grande público: a punição por cada pecado corresponde perfeitamente ao tamanho deste mesmo pecado. Quem errou mais, paga mais caro. Até parece que o narrador-Deus gozador perdeu o senso de humor na hora mais importante do filme. Que pena.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/pecados-intimos/
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