quarta-feira, 25 de novembro de 2009

O Céu De Suely

Jornada deliciosamente imperfeita de garota do sertão é um filme intimista, delicado e muitas vezes emocionante
Por: Rodrigo Carreiro

Não é preciso muito esforço para perceber que existe um diálogo claro entre os mais talentosos cineastas brasileiros da fase pós-retomada (anos 2000 para cá) e a turma do Cinema Novo. “O Céu de Suely” (Brasil/Alemanha/França, 2006), pequena e despojada pérola dramática que documenta a vida de uma jovem numa cidade do sertão, confirma mais uma vez esta relação. O segundo filme do cearense Karim Aïnouz – o nome é estrangeiro assim porque ele é filho de argelino – integra um grupo de produções baratas, cheias de inteligência e frescor narrativo, que se esforça para atualizar o sertão puro e selvagem que conhecemos dos filmes de Glauber Rocha, mostrando os efeitos da urbanização degradada que os anos 1980/90 ocasionaram naquele território mítico.
Intimista, delicado e muitas vezes genuinamente emocionante, “O Céu de Suely” é uma das produções mais interessantes a documentar a relação desigual entre cidade grande e sertão. Aïnouz introduziu dentro do ambiente inóspito de Iguatu, calorento centro urbano de pequeno porte no interior do Ceará, uma protagonista anônima que tem boa dose de semelhança com o personagem principal da estréia do cineasta: Madame Satã, o lendário homossexual carioca que emprestou o apelido à produção de 2002. Hermila (Hermila Guedes, pernambucana de Cabrobó) tem 21 anos e, entre uma e outra rasteira do destino, decide que precisa encontrar um caminho a seguir. Ela está em busca de uma
identidade. O filme documenta este processo de auto-conhecimento em uma narrativa não-verbal, cheia de silêncios e longas tomadas contemplativas. É um filme deliciosamente imperfeito.
Imperfeição, aliás, é palavra-chave no vocabulário da produção, e provavelmente o elemento que a torna tão viva e vibrante, tão cheia de raça. É provável que, se submetido a algum laboratório de roteiro, o texto escrito por Aïnouz, Maurício Zacharias e Felipe Bragança fosse rotulado como ruim. Há algumas seqüências que parecem desconectadas da narrativa como um todo. A jornada de Hermila/Suely não segue em absoluto o manual do roteiro clássico, com aquelas etapas tradicionais que a gente reconhece por instinto (introdução dos personagens, estabelecimento do conflito e por aí adiante). Muitas vezes a narrativa vacila, tromba com um muro invisível, volta atrás e tenta algum caminho diferente, em uma espécie de método caótico de tentativa e erro. E isto, por paradoxal que pareça, é maravilhoso. A imperfeição dá a aparência de rascunho ao longa-metragem, deixando-o com cor e cheiro de vida real.
Claro que, em termos de estética, isto não é algo que normalmente se vê nas maiores produções nacionais, onde tudo é novo, limpo e asséptico, como se a equipe de filmagem fosse obrigada a fazer uma faxina geral nas locações e figurinos antes de começar a filmar, mesmo que isso implique na fuga de um naturalismo que, via de regra, tem feito muito bem ao exemplares mais acanhados (em termos de orçamento) da cinematografia nacional. Em 2005, tivemos um exemplo parecido, o pernambucano “
Cinema, Aspirinas e Urubus”, do qual este “O Céu de Suely” é filme-irmão. Curioso é que entre as poucas críticas negativas que o trabalho de Aïnouz tem recebido, está a acusação de esteticismo excessivo. É provável que um cidadão urbanóide do Sudeste pense uma coisa dessas do filme de Karim Aïnouz, talvez porque só conhece o sertão nordestino pelas fotos de Sebastião Salgado. Iguatu é uma locação perfeita para a história da menina sem esperança, magnificamente fotografada pelo mestre Walter Carvalho.
A fotografia merece um parágrafo à parte porque busca, intencionalmente, o efeito de rascunho, de obra não-acabada que o filme pretende alcançar. A imperfeição anteriormente citada é aqui uma qualidade rara; as longas tomadas sem cortes jamais passam a sensação de erro calculado (estou pensando especialmente numa cena prosaica em que, durante o banho de Hermila, a câmera perde foco e enquadramento, enquanto procura desesperadamente o fio da meada de novo). Não existe artificialidade nas imagens. A impressão geral é mesmo de um filme semi-amador, como se as arranhadas imagens de Super Oito que abrem o filme tivessem mesmo sido captadas pelos personagens. A câmera parece mambembe (embora, claro, isto seja apenas impressão, como prova outra longa e sofisticada tomada, em que Hermila caminha ao lado dos trilhos de um trem) e acompanha, silenciosamente, a trajetória errante que a garota segue a partir do momento em que volta de São Paulo e se instala em Iguatu, com o filho de um ano, à espera do marido que nunca chegará.
Vale ainda ressaltar a força de um elenco formidável, que encaixa perfeitamente em cada um dos papéis e interpreta uniformemente, com tremendo naturalismo. De fato, os atores se misturam ao povo de Iguatu (o filme foi feito na cidade cearense, em sete semanas, e muitos moradores atuaram como extras) ao ponto de se tornarem praticamente invisíveis – se você não reconhecer os rostos do elenco profissional, dificilmente conseguirá apontar quem é ator e quem é figurante. Como aparece em virtualmente todas as cenas, Hermila Guedes ganha destaque especial, pois encarna a mistura exata de ingenuidade, ousadia e hesitação da personagem. Para completar, “O Céu de Suely” conta com uma tomada de encerramento belíssima, pungente e perfeitamente adequada à trajetória de Hermila/Suely, além de comportar uma dose saudável e feroz de ironia anticomercial. Em resumo, um filme para se apaixonar.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/ceu-de-suely-o/

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