
Escocês Neil Marshall faz filme claustrofóbico e assustador sobre mulheres presas em caverna
Por: Rodrigo Carreiro
Filmes de horror puro e simples são artigo raro no cinema contemporâneo. A razão é meramente comercial: quando mesclado a outros gêneros, como a comédia e a ação, o horror atrai mais público. Por isso, um longa-metragem que explora as convenções genuínas do gênero é sempre saudado com alegria pelos fãs. Esse é o caso de “Abismo do Medo” (The Descent, Grã-Bretanha, 2005), uma das obras mais claustrofóbicas dos últimos tempos. Curto e vigoroso, o exercício de angústia promovido pelo diretor escocês Neil Marshall contém alguns dos momentos mais intensos e assustadores dos últimos tempos.
A idéia inicial de “Abismo do Medo” germinou a partir da boa recepção oferecida pelos fãs de horror a “Cães de Caça”, longa de estréia do diretor e cultuada gema sobre lobisomens. Marshall não havia ficado inteiramente satisfeito com o resultado final. Após ver o filme pronto, ele sentiu que havia introduzido muito humor (ainda que cínico) na trama, suavizando o impacto das seqüências mais fortes. Para o projeto seguinte, ele simplesmente tratou de bolar a situação mais angustiante a que podia submeter um grupo de personagens.
Um ingrediente extra foi sugerido por um dos produtores: todos os personagens deveriam ser mulheres. Assim foi feito. O filme narra uma aventura vivida por seis amigas de faculdade, que durante uma excursão pelas cavernas Boreham, nos EUA, acabam presas numa galeria de túneis subterrâneos após um deslizamento de terra. Para completar o terror, uma raça de ferozes criaturas desconhecidas passa a atacar as garotas, que precisam enfrentar a escuridão e as feras, além de encontrar uma saída do lugar, para não morrerem.
“Abismo do Medo” não é perfeito e tem a sua cota de problemas, mas o clima de urgência e angústia que Neil Marshall pretendia é alcançado com sobras, sem a necessidade de efeitos especiais. Essencialmente, o longa-metragem é uma produção barata que se apóia em velhos truques para cravar susto após susto no espectador: a escuridão e o medo de morrer preso embaixo da terra. O fiapo de trama ganha vigor nas mãos de um elenco semi-desconhecido e faminto por algum reconhecimento.
O maior destaque da película é a esplêndida fotografia de Sam McCurdy, que aproveita ao máximo as apertadas, escuras e úmidas cavernas do complexo de Derbyshire, na Escócia, que serviram como locação. Uma das decisões mais importantes foi filmar sem iluminação artificial, aproveitando apenas a luz produzida pelos próprios atores: lanternas, fósforos e equipamentos infravermelhos para auxiliar a visão na escuridão. A decisão foi corajosa, uma vez que mais da metade do filme se passa dentro das cavernas, e há poucos momentos em que a platéia consegue ver os detalhes do que está ocorrendo com as garotas.
Na maior parte do tempo, vê-se apenas pontos de luz se mexendo na escuridão, e isso pode incomodar algumas pessoas. A estratégia, no entanto, funciona perfeitamente, porque põe o público na mesma posição sufocante das protagonistas. Como as mulheres, não conseguimos ver o caminho, não sabemos direito o que está acontecendo e não temos idéia de onde o perigo espreita – o próximo ataque pode vir de qualquer lugar. “Abismo do Medo” é o tipo de filme que deixa os nervos em frangalhos, e Neil Marshall aproveita isso ao máximo, pregando sustos de parar corações desavisados. A cena em que as criaturas subterrâneas se revelam é uma das mais aterrorizantes de 2005, capaz de fazer muito marmanjo pular na cadeira. Só ela já valeria o filme.
Mas há muito mais. Os corredores e túneis apertados que as seis garotas são obrigadas a percorrer muitas vezes produzem uma sensação de angústia que a escuridão implacável só amplifica. “Abismo do Medo” é claustrofóbico até o osso. Há uma seqüência, em que uma das mulheres fica presa quando o túnel em que rasteja vai estreitando cada vez mais, capaz de deixar muita gente precisando respirar ar fresco. Quando visto no cinema, o filme ganha ainda mais impacto, pois exige atenção para que o espectador possa localizar geograficamente o grupo, dentro de cada tomada, e acompanhar sua movimentação.
Outro acerto do cineasta escocês é o desenvolvimento do enredo sem pressa. Neil Marshall não tem medo de causar enfado na platéia, e retarda a aparição das criaturas ameaçadoras até não poder mais. O filme se beneficia disso desenvolvendo duas das personagens a um nível não muito comum em filmes de horror. Sarah (Shauna Macdonald) e Juno (Natalie Mendoza) são contrapostas desde o prólogo, quando a segunda lança um olhar invejoso à primeira, no momento em que esta se despede de uma excursão em corredeiras para ficar com a família. É evidente, desde o princípio, que existe uma tensão entre ambas, e o diretor dá um jeito de amplificar essa tensão, sem pressa, até o clímax explosivo.
Dá para afirmar, sem medo de errar, que “Abismo do Medo” é excepcional até o momento em que as criaturas desconhecidas atacam o grupo pela primeira vez. Aí, os pontos fracos começam a aparecer. Um deles é a edição super-rápida das cenas de ação. Associada à escuridão da caverna, a edição em flashes (tomadas com menos de um segundo) faz com que seja praticamente impossível saber o que está acontecendo quando uma besta ataca uma garota. Além disso, quando os bichos começam a agir, não é muito difícil prever quem do grupo vai morrer primeiro e quem vai sobrar até o fim. Apesar disso, o filme se segura bem até o final amargo e pouco conclusivo, que retoma o alto nível da primeira hora de projeção.
A conclusão do filme, por sinal, traz imagens bem curiosas, que merecem uma reflexão mais atenta. Através de referências visuais a filmes como “Carrie – A Estranha” e “Apocalypse Now”, o diretor Neil Marshall ilustra a mudança radical experimentada pelas garotas durante a experiência. Elas são mulheres jovens, inteligentes e descoladas, e acabam virando bárbaros, verdadeiros “homens das cavernas”, ironia bastante sagaz em virtude do cenário da aventura que acabaram de viver.
Além disso, também é importante observar que, embora seja protagonizado exclusivamente por mulheres, “Abismo do Medo” não escapa de exibir uma certa dose de misoginia. A observação denota um problema típico de roteiristas homens, que dificilmente sabem escrever para personagens femininos com a sutileza necessária. A noite anterior à excursão, que as meninas passam juntas numa cabana no bosque, é uma demonstração de que diálogos entre mulheres não é o forte do diretor, que também escreveu o roteiro.
Sobre isso, Marshall argumenta que não tinha a mínima intenção de fazer um filme feminista ou sobre a natureza feminina. Para ele, “Abismo do Medo” é apenas um veículo cinematográfico construído para trazer ao cinema dos anos 2000 o medo do escuro, que assustou tanta gente em décadas passadas e permanece terrivelmente eficaz, apesar de pouco utilizado em grandes produções. E isso, é verdade, Marshall consegue realizar com louvor.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/abismo-do-medo/
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