quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Madame Satã


No longa-metragem de estréia, o cearense Karim Aïnouz cria filme de interiores e arranca boas interpretações dos atores
Por: Rodrigo Carreiro

Em avaliação retrospectiva, 2002 parece ter sido o ano em que começou a tão esperada reconciliação entre cineastas e público brasileiros. “Madame Satã” (Brasil, 2002), o último grande lançamento do período entre os longas nacionais, tematiza esse casamento de forma muito emblemática. O filme chegou a reboque do sucesso avassalador de “Cidade de Deus” e, mesmo contra a vontade do diretor, o estreante Karim Aïnouz, pegou carona no debate sobre estética versus cosmética da fome. É impossível não remeter à discussão que incendiou os ânimos dos cinéfilos. Porque, afinal, “Madame Satã” é um filme pop, que tem um ponto fortíssimo no aspecto visual. Esse apelo estilístico é tão forte, na verdade, que encobre os demais aspectos da obra.
Cabe esclarecer, antes de tudo, que esse olhar pop que o filme propõe sobre a trajetória do mítico transformista, que incendiou as ruas da boêmia carioca na primeira metade do século XX, não é um julgamento, apenas uma constatação. Não se trata de rotular a obra como boa ou ruim a partir dessa perspectiva, mas apenas de estabelecer paralelos entre as opções visuais e narrativas adotadas pelo cineasta e equipe e a produção contemporânea nacional, além de contextualizá-lo dentro da polêmica travada por aqueles que refletem sobre o cinema atual. “Madame Satã” não é pop no sentido chulo do termo, não é “O Diário de Bridget Jones”; trata-se um filme forte, vigoroso, um “Querelle” (de Fassbinder) dos Trópicos. A faceta pop surge a partir da própria inspiração do filme, uma biografia do personagem publicada pela Brasiliense na coleção Encantos Radicais, uma das pontas-de-lança do Brasil rumo a uma tentativa de inserção no panorama da cultura pop internacional, na década de 1980.
Isso posto, é preciso ressaltar que, mesmo trabalhando com o modesto orçamento de R$ 2,3 milhões (quatro vezes menos do que o insosso “A Paixão de Jacobina”, por exemplo), o tratamento cinematográfico de Madame Satã resulta deslumbrante, a começar pelo excepcional desempenho do elenco. Lázaro Ramos, o baiano que interpreta o protagonista, mostra uma performance vigorosa e física, mas tão rica em nuanças e expressões faciais, que consegue traduzir toda a complexidade do personagem sem precisar de muitas palavras. Todo o resto do elenco, especialmente Marcélia Cartaxo (a prostituta Laurita) e o travesti Tabu (Flávio Bauraqui), oferece desempenhos em consonância com a excelência do João Francisco dos Santos (o nome real do personagem).
Os problemas de baixo orçamento são também contornados com brilhantismo na reconstituição de época. Toda a trama se concentra num pequeno recorte de alguns meses de 1932, o ano que flagra o início da transformação do transexual, de malandro respeitado no bairro da Lapa a mito carioca regado a homossexualismo e assassinato. Além de opção coerente feita pelo cineasta, a decisão facilita a direção de arte, que reconstitui fielmente as ruas de paralelepípedo molhado e as paredes de reboco mofado da Lapa. “Madame Satã” é um filme de interiores, com raras seqüências panorâmicas, filmado basicamente com a câmera na mão e priorizando os planos médios e os closes. Isso valoriza não apenas o trabalho dos atores, mas também a linda fotografia de
Walter Carvalho, verdadeira estrela do filme.
Para realçar o efeito de mistério que envolve o protagonista, as cenas são quase todas noturnas. Cores quentes – vermelho e laranja em especial – envolvem os personagens, e a luz freqüentemente ilumina os cenários para deixar as pessoas na penumbra. Outra opção estética muito perceptível é o uso inventivo do foco, sempre indo e voltando dos objetos aos atores, sem intenção aparente. Segundo AÚnouz, essa estratégia foi bolada para traduzir a própria falta de foco do protagonista, que parece, até a metade do filme, não ter conseguido traduzir em ação a própria falta de
identidade. Quando finalmente resolve o dilema, o abuso do foco desaparece. Nesse momento, numa bela seqüência improvisada em que a “família Satã” dança e canta no quintal do moquifo em que vive, os longos silêncios da primeira parte também somem, dando lugar à música vibrante que envolve o resto do longa.
Todo esse brilhantismo estético termina por esconder uma certa frieza do texto. Talvez preocupado em evitar uma abordagem clichê dos estereótipos que envolvem a figura do malandro carioca (tarefa na qual se sai muito bem), Aïnouz hesita nos diálogos, impedindo que eles capturem melhor os anseios e desejos dos indivíduos em cena e até o próprio clima de liberdade e boêmia da época. Mas não importa; um filme que consegue a proeza de evitar a vitimização de um homem cercado de preconceito por quatro lados – negro, pobre, homossexual e assassino -, e ainda assim desperta simpatia por ele, só poderia ser um bom filme.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/madame-sata/

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