
Um filme de Martin Scorsese que radiografa com precisão o submundo noturno de Nova York, a partir das visões de um homem solitário e insone, que vara as madrugadas a bordo de um automóvel, cruzando de um lado a outra a grande metrópole norte-americana. A descrição poderia muito bem se referir a “Taxi Driver”, um dos grandes clássicos do cineasta descendente de italianos, mas na verdade apresenta o espectador a “Vivendo no Limite” (Bringing Out the Dead, EUA, 1999), espécie de continuação informal do filme de 1976, que premiou Scorsese com a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Apesar do tratamento visceral que o diretor deu à adaptação cinematográfica das memórias de um paramédico, o filme transparece certa falta de foco narrativo e aponta, talvez, um momento da carreira em que Scorsese começava a se repetir.
O paralelo com “Taxi Driver” não é nenhum absurdo. O próprio cineasta percebeu as semelhanças do projeto com o longa de 1976, depois de ler a biografia que originou a produção, e chamou o amigo Paul Schrader (autor de “Taxi Driver” e mais quatro roteiros para Scorsese) para cuidar do texto. Schrader, talvez inconscientemente, construiu um protagonista bem parecido com Travis Bickle, que Robert De Niro eternizou com uma das maiores interpretações de sua carreira. Frank Pierce (Nicolas Cage), o paramédico, também está à beira de um colapso nervoso. Exausto após anos a fio salvando bêbados e drogados na periferia da cidade, ele não consegue mais dormir e está à beira da paranóia. O encontro acidental com uma ex-viciada (Patrícia Arquette, então mulher de Cage) pode significar, para ele, a redenção ou a queda definitiva.
A maior virtude da película reside em um dos pontos fortes do cineasta ítalo-americano, que é o tratamento visual sofisticado. Filmando em locações reais e com olho atento para detalhes, Scorsese traça um panorama acurada de degradação, loucura, pobreza e criminalidade que permita a fauna boêmia da madrugada nova-iorquina. Diz o ditado que Nova York é a cidade que nunca dorme, e “Vivendo no Limite” investe todas as fichas na perpetuação dessa sentença. Como filho predigo que jamais abandonou a cidade, Scorsese a filma com doses generosas de realismo e dando ao resultado final forte carga de religiosidade. Esta é uma característica importante de sua carreira que transparece, sobretudo, no personagem de Ving Rhames – e a cena em que ele e Cage salvam uma viciada de sucumbir a uma overdose de heroína acaba se mostrando um dos melhores momentos do filme, combinando humor, dor e Deus com rara eloqüência.
Um aspecto interessante é a montagem moderna, veloz e cheia de truques de edição, incluindo câmera acelerada e tela dividida. Assinado pela habitual parceira de Scorsese, Telma Schoonmaker (dona de três Oscars da categoria), o trabalho tenta imprimir ao longa-metragem o ritmo frenético e incessante da vida de Frank Pierce, e acerta o alvo. A fotografia sombria do craque Robert Richardson também vai direto ao ponto, ganhando destaque especial a delirante seqüência de sonho em que Frank recorda o incidente com Rose (primeira paciente que ele não conseguiu salvar), a que o paramédico atribui o início do período de colapso nervoso. Scorsese povoa a história com coadjuvantes interessantes – bêbados, traficantes e pirados em geral, que dão colorido boêmio ao filme e constituem promessas de vida além da obra – mas não consegue esconder o cansaço e a falta de foco do roteiro.
“Vivendo no Limite” registra bem a noite louca de Nova York, mas não consegue criar um protagonista com o mesmo grau de empatia de um Travis Bickle ou de um Jake La Motta (“Touro Indomável”). Frank Pierce, como a maioria dos personagens importantes da obra de Scorsese, é uma alma torturada rumo ao fundo do poço, que não sabe bem onde encontrar redenção, mas continua batendo cabeça atrás dela. Nicolas Cage faz um bom trabalho na pele deste derrotado (observe as olheiras e o rosto cansado que ele ostenta durante todo o filme), mas Patricia Arquette parece apagada, uma vela sem chama. Talvez a atriz seja a chave para entender a diferença entre “Vivendo no Limite” e as obras-primas de Scorsese. Nos melhores filmes, o diretor criava protagonistas que refletiam aspectos sombrios de sua própria personalidade. Nos trabalhos medianos, são os coadjuvantes que refletem melhor o estado de espírito de Scorsese.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/vivendo-no-limite/
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