
Por: Rodrigo Carreiro
A indústria do cinema pode ser injusta e, muitas vezes, cruelmente irônica. Em 2006, ela consagrou o roteirista veterano e diretor neófito Paul Haggis pelo melodrama “Crash”, premiando-o com os dois Oscar mais importantes do ano – filme e direção – por um filme que não tinha pudor em manipular emocionalmente a audiência. Dois anos depois, eis que Haggis demonstra clara evolução com um amargo thriller investigativo que, curiosamente, acabou desprezado pelo público e torpedeado por críticos. Com ótimas atuações de Tommy Lee Jones e Charlize Theron, “No Vale das Sombras” (In the Valley of Elah, EUA, 2007) integra uma safra de filmes engajados, que critica a intervenção norte-americana no Iraque.
A crítica feita à guerra, contudo, está mais nas entrelinhas, no subtexto, e não é feita de forma explícita – pelo menos até o terceiro ato, quando o filme dá uma guinada no tom emocional, abandona a sutileza da narrativa e cai na tentação de flertar com o melodrama excessivo que fez a fama do diretor. Haggis chega ao cúmulo de encerrar a obra com uma seqüência tendenciosa e manipulativa, que cria rima com outra cena localizada na abertura, mas explicita um dos piores cacoetes narrativos dele: a tendência a explicar demais, a sublinhar o tema abordado com uma caneta piloto de tinta fosforescente, como se não confiasse na própria capacidade de contar bem uma história sem cutucar o espectador o tempo inteiro, apontando para onde ele deve olhar e em quê deve prestar atenção, a cada momento.
A conclusão aberrante mancha mas não retira os méritos da produção, que começam pelo fabuloso elenco. Paul Haggis já havia demonstrado boa capacidade para reunir grupos de atores talentosos em “Crash”, e repete aqui esta qualidade. O protagonista, interpretado por Tommy Lee Jones, é Hank, investigador aposentado cujo filho militar desapareceu misteriosamente, três dias após retornar do Iraque. Para evitar que o rapaz seja considerado desertor, Hank decide investigar o caso por conta própria, auxiliando a agente Emily (Charlize Theron), policial civil responsável oficialmente pela investigação. Juntos, os dois precisam vencer a rigidez da burocracia militar para alcançar sucesso na empreitada. Eles contam com um trunfo: pequenos vídeos gravados no celular pelo filho de Hank, quando ele ainda estava no Iraque.
Todo o elenco brilha em conjunto. Theron dispensa a maquiagem e convence perfeitamente como uma detetive esforçada (“eu não tenho uma carreira, tenho um emprego”), Jason Patric tem bons momentos como o sargento que comanda a investigação paralela dentro do quartel, e Susan Sarandon não precisa de mais do que uma cena de alta voltagem emocional para provocar lágrimas furtivas na platéia. Mas se o filme pertence a um ator, o nome é Tommy Lee Jones. Caladão, fortemente apegado à rígida rotina militar (observe o truque que ele usa para “passar” as roupas sem o equipamento apropriado), o ator texano encaixa perfeitamente no papel do pai atormentado, que pressente ter algum tipo de culpa no desaparecimento, ainda que não entenda como. Os olhos fundos e o resto vincado contribuem para que o público esqueça rapidamente que está diante de um ator, e não de um pai verdadeiramente maltratado pelo destino.
O roteiro, escrito pelo próprio Paul Haggis, segue a linha dos trabalhos do escritor Dennis Lehane, cujo trabalho inspirou dois filmes parecidos em temática e atmosfera (”Sobre Meninos e Lobos” e “Medo da Verdade”). Na aparência, trata-se de um thriller detetivesco, uma investigação policial que privilegia os aspectos forenses do caso. Sob essa capa de filme de gênero, o enredo ilumina aspectos obscuros da condição humana. Na superfície, porém, está o primeiro problema do filme: a capacidade dedutiva de Hank (“sob uma lâmpada de rua, um carro azul parece verde”) é excessivamente brilhante para um mero militar aposentado. Em certos momentos, o sujeito mais parece uma versão matuta do genial Sherlock Holmes, dando verdadeiras aulas de dedução a todos os outros investigadores envolvidos no caso.
Mesmo assim, como thriller de investigação, “No Vale das Sombras” funciona. No terceiro ato, porém, a história se transforma. Enquanto o talento dedutivo de Hank se esvai, o filme se transforma aos poucos numa meditação amarga sobre o processo de desumanização das pessoas, causado pela guerra. É importante observar que “No Vale das Sombras” pertence a uma safra abundante de títulos que demarcam, em diversos gêneros e com qualidade cinematográfica variável, uma postura crítica em relação à política internacional dos Estados Unidos. É neste contexto que deve ser interpretada a longa metáfora que dá título ao filme, a respeito do duelo bíblico entre Davi e Golias (a cena em que esta metáfora aparece, aliás, é uma cópia xérox mal disfarçada da seqüência sobre o manto invisível em “Crash”).
Um destaque positivo é a sensacional fotografia de Roger Deakins, que privilegia a luz difusa e opaca do meio da tarde para captar cores frias e desgastadas. O visual evoca apropriadamente o tom sorumbático do enredo. Infelizmente, o maior problema de “No Vale das Sombras” está no próprio Paul Haggis. Ele é um diretor que não sabe confiar na audiência. Basta dizer que chega ao cúmulo de criar duas seqüências distintas no final (uma conversa franca de Hank com um soldado colega do filho e mais a seqüência de encerramento, sobre a bandeira dos Estados Unidos) para martelar duas vezes a mesma mensagem na cabeça da platéia. Ao abandonar a sutileza narrativa e dar ênfase excessiva à mensagem que quer passar, o diretor mostra que não confia na capacidade da audiência em decodificar mensagens um pouquinho mais complexas. Esta falta de fé na audiência é, tradicionalmente, um elemento que separa os diretores audaciosos dos apenas esforçados.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/vale-das-sombras-no/
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