terça-feira, 24 de novembro de 2009

O Guia Do Mochileiro Das Galáxias


Filme de Garth Jennings mantém humor bizarro e tipicamente inglês do romance no qual foi baseado
Por: Rodrigo Carreiro
Adaptações de livros de grande sucesso invariavelmente ganham dois tipos de comentários críticos quando lançadas nos cinemas. Quem nunca leu a obra original tem maior chance de ficar satisfeito, apesar de muitas vezes perder detalhes e piadas internas. Leitores fiéis, por outro lado, freqüentemente reclamam de modificações em personagens ou passagens favoritas. Isso aconteceu com a adaptação cinematográfica de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” (The Hitchhiker`s Guide to the Galaxy, EUA/Inglaterra, 2005), que não agradou totalmente aos fanáticos pelo livro cult de Douglas Adams, publicado nos anos 1970. A boa notícia é que os não-leitores vão se deparar com uma sátira brilhante, de humor tipicamente inglês, que consegue ser irreverente, sarcástica e levemente surreal e, ao mesmo tempo, atingir públicos de todas as idades.
Se você não conhece nada sobre o universo do romancista Douglas Adams, precisa saber alguns detalhes para compreender o contexto do filme. “O Guia do Mochileiro das Galáxias” faz parte de uma série de cinco livros que criaram um universo completo, com planetas e uma galeria de personagens excêntricos de fazer inveja ao Chapeleiro Maluco que Alice encontrou no País das Maravilhas. A série busca inspiração em na mais famosa produção de George Lucas, “Star Wars”, só que revestindo a curiosa galeria de alienígenas bizarros com uma dose extra-grande de humor nonsense, absurdo. “O Guia do Mochileiro das Galáxias” seria o resultado da jornada de Darth Vader se o grupo Monty Python tivesse escrito os roteiros dos filmes de Lucas.
O filme é baseado no primeiro livro da série de Adams, que apresenta os personagens principais. O protagonista é o humano Arthur Dent (Martin Freeman). Certo dia, ele acorda de manhã com a obrigação de tentar impedir que sua casa seja removida para a construção de uma rodovia. O que ele não sabe é que, no mesmo dia, a Terra será explodida porque está na rota de uma via interplanetária de tráfego pesado. A sorte de Dent é que o melhor amigo dele, Ford Prefect (Mos Def), é na verdade um alienígena que está na Terra fazendo pesquisa para incluir informações sobre o planeta dos humanos no Guia do Mochileiro das Galáxias, o livro mais vendido do universo. Prefect tem um anel mágico que o permite pegar carona em qualquer nave intergalática, o que salva a ambos da destruição da Terra.
Eventualmente, Arthur Dent e Ford Prefect acabam trocando de carona e indo parar na Coração de Ouro, a nave do presidente da galáxia, o hiperativo Zaphod Beeblebrox (Sam Rockwell). Junto com ele, viajam a terráquea Trisha McMillan (Zooey Deschanel), interesse romântico de Arthur, e o robô maníaco-depressivo Marvin (voz de Alan Hickman). O político de sorriso radiante está à procura de um supercomputador, nos confins da galáxia, capaz de elaborar a pergunta mais importante de todo o universo. Sim, porque outro supercomputador já respondeu, alguns milhões de anos antes, à resposta mais importante do universo: “42”. Você não entendeu? Tudo bem, vá assistir ao filme. Esse é apenas uma das centenas de exemplos de piadas que podem parecer sem graça quando mal contadas, mas fazem toda a diferença do mundo quando aparecem em um filme que não pára de irradiar idéias, como é o caso de “O Guia do Mochileiro das Galáxias”.
O senso de humor peculiar e bem inglês (o confuso protagonista veste pijamas e procura tomar um chá decente em cada local que visita, mas nunca consegue – como sabemos, só os ingleses fazem chá direito, e eles foram destruídos!) do livro foi conservado na adaptação cinematográfica do filme, o que é algo a ser louvado. Na realidade, “O Guia do Mochileiro das Galáxias” é um filme inglês, com elenco inglês, que foi parcialmente financiado por Hollywood, e teve o roteiro original de Douglas Adams burilado por Karey Kirkpatrick (da extraordinária animação “A Fuga das Galinhas”), mas tentou manter o espírito anárquico e delirante da obra original. E isso é uma coisa boa.
Crédito deve ser dado ao diretor estreante Garth Jennings. Consta que ele foi uma indicação do norte-americano Spike Jonze (de “Quero Ser John Malkovich”), convidado antes. Parece ter sido uma decisão perfeita, pois, como inglês autêntico, Jennings soube manter o espírito bretão e fazer um filme que orgulharia Terry Gilliam, o pai desse tipo de obra alucinada (“Medo e Delírio em Las Vegas”). Jennings transformou o filme em uma usina de boas idéias, como a ótima decisão de transformar os atores em bonecos de crochê em determinada cena. É uma gag visual delirante, mas perfeitamente integrada à trama.
Do ponto de vista visual, o longa-metragem é um triunfo, não apenas nas grandiosas paisagens geradas por computador (o melhor exemplo é o sobrevôo, em uma espécie de grua, que Arthur Dent dá na Terra junto com o engenheiro de planetas Slartibartfast, interpretado por Bill Nighy), mas sobretudo na concepção correta de cada ambiente, como o sujo banheiro da nave dos vogan, a limpa superfície branca da Coração de Ouro e o clássico robô-com-cabeção, Marvin, uma figura que nem precisa abrir a boca para ser hilariante. O responsável por isso é o diretor de arte Joel Collins, que trabalhou para conseguir dar um certo ar dos anos 1970 ao visual, sem deixar que o filme parecesse velho.
Foi difícil, mas Collins conseguiu. Tome como exemplo os figurinos, elaborados por Sammy Sheldon e Sammy Howarth, do presidente da galáxia: supercoloridos e largos, lembram um pouco as roupas que os Rolling Stones vestiam ao redoir de 1968. O design das criaturas alienígenas também é bacana (repare como os vogan são feitos não por computação gráfica, mas à moda antiga, com borracha e maquiagem, e passam tranqüilamento por primos de Jabba The Hutt, o vilão da série de George Lucas).
Além disso, há inúmeros trechos de animação em duas dimensões que simula a navegação em uma página da Internet e traz histórias curtas ilustradas em pequenas vinhetas narrativas que parecem ter sido roubadas da abertura estilizada do filme “Prenda-me Se For Capaz”, de Steven Spielberg. Este é um recurso que muitos podem considerar ultrapassado, mas que aqui se revela criativo e inteligente, e casa perfeitamente com o tom anárquico e o ritmo alucinado da película.
Não há dúvida de que o elenco de “O Guia do Mochileiro das Galáxias” funciona. Martin Freeman tem o senso de confusão adequado para o protagonista, e a voz cansada de Alan Hickman complementa com perfeição as intervenções sempre mau-humoradas e hilariantes de Marvin, o melhor personagem da série. Mas o destaque maior vai para Sam Rockwell, que imprime energia e um sorriso radiante ao presidente Zaphod Beeblebrox. O ator confirma que seu nome nos créditos de um projeto é mesmo uma garantia de qualidade. Preste atenção, ainda, ä espirituosa participação de John Malkovich, como o grande rival de Beeblebrox, personagem que não aparece no livro e foi criado especialmente para o filme por Douglas Adams.
O romancista, por sinal, teve que esperar mais de duas décadas para o filme sair, e não ficou vivo para ver o resultado (Adams morreu em 2001). Uma pena. Ele teria gostado de ver que os temas fundamentais do seu livro – as relações das pessoas com o poder e a burocracia, algo muito adequado nos anos 1970 mas aparentemente fora de moda no século XXI – foram mantidos no filme, e parecem curiosamente atuais, contra todos os prognósticos. Talvez “O Guia do Mochileiro das Galáxias” não tenha o tipo de humor que os brasileiros apreciam, mas isso não retira os méritos de uma das comédias mais despretensiosas e inteligentes de 2005.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/guia-do-mochileiro-das-galaxias-o/

Nenhum comentário:

Postar um comentário