
Filme belo e estranho de Coppola sobre a juventude faz retrato idílico de um passado perdido
Por: Rodrigo Carreiro
Uma das características mais importantes do cinema, no século XX, foi a confirmação de sua capacidade de emoldurar em filmes a identidade cultural de um povo, ou de uma nação. Com relação aos EUA, país que produz a maioria esmagadora dos filmes lançados em escala internacional, a imagem refletida pelo cinema tem aspectos bastante curiosos. Um deles é a projeção da década de 1950 como o período dourado da sociedade daquele país. A razão desse fascínio com a década de nascimento do rock’n’roll é um mistério, mas pode ser conferida até mesmo em filmes que não se passam no período. É o caso de “O Selvagem da Motocicleta” (Rumble Fish, EUA, 1983), de Francis Ford Coppola.
O filme não é ambientado naquele período de nascimento e consolidação da Guerra Fria, mas 30 anos depois. Não possui nenhuma referência explícita a ícones da época, como o já citado Elvis ou James Dean. A narrativa jamais cita algo dos anos 1950. Ainda assim, o filme está impregnado de um senso de nostalgia por um passado que não volta mais, um passado idílico de inocência perdida – e as imagens que traduzem visualmente essa nostalgia pertencem à década do senador Joseph McCarthy: motos Harley Davidson, casacos de couro, brigas de gangue, rebeldia juvenil.
O retorno aos anos 1950 não é exclusivo de Francis Ford Coppola; pode ser verificado em muitos outros diretores, de escolas completamente distintas, a exemplo de David Lynch e Jonathan Demme. O homem de “O Poderoso Chefão”, pelo contrário, sempre foi um visionário aparentemente desconectado dessa imagem de nostalgia pós-guerra, imagem que ele abraçou com força durante a primeira metade da década de 1980, com filmes como “Tucker” e o co-irmão de “O Selvagem da Motocicleta”, o anterior “Vidas Sem Rumo”. Essa declaração implícita de amor por um passado nostálgico deve querer dizer algo sobre a sociedade norte-americana. Vale uma reflexão particular. Não aqui.
“O Selvagem da Motocicleta” é um filme pequeno, bem na contramão da grandiloqüência que marcou a produção de Coppola na década anterior. Dos filmes ambiciosos e operísticos como a trilogia “O Poderosos Chefão” e “Apocalypse Now”, o cineasta ítalo-americano passou a trabalhar numa escala mais íntima e mais particular. Parte disso resultou de seguidos fracassos financeiros que levaram sua produtora, a American Zoetrope, à falência. A outra parte pode ser franqueada à vontade de Coppola em falar com a juventude de maneira mais próxima, algo que não havia conseguido nos trabalhos anteriores.
O personagem principal é Rusty James (Matt Dillon). O rapaz lidera uma pequena gangue adolescente numa cidade industrial falida. É um rebelde sem causa, que provoca brigas, gosta de posar de durão e tem problemas na escola. Seu comportamento é uma clara tentativa de seguir os passos do irmão, um lendário líder juvenil que fez fama e saiu da cidade há muitos anos, em busca de espaço na Califórnia, e nunca mais deu notícias. A mãe de Rusty fugiu de casa, e o pai é um alcoólatra. O retrato da vida adolescente é repleto de melancolia e desencanto absoluto com o futuro. A visão pessimista do futuro bate perfeitamente com os primeiros restros de uma geração perdida que surgiam nos anos 1980.
Uma das grandes sacadas de Coppola foi filmar em preto-e-branco. Ao mesmo tempo, o som do filme parece ter problemas – é baixo, abafado, repleto de ruídos que tomam o lugar da música na trilha sonora. Aparentemente não existe razão para essas duas coisas, mas na segunda metade do filme, quando o lendário Motorcycle Boy (Mickey Rourke) reaparece sem aviso prévio, ficamos sabendo o motivo: ele é daltônico (ou seja, não consegue distinguir as cores e vê em preto-e-branco) e possui um grave problema auditivo. Em outras palavras, a conclusão óbvia é de que “O Selvagem da Motocicleta” é narrado do ponto de vista dele, apesar do seu nome jamais ser mencionado por algum personagem.
A interpretação de Mickey Rourke, com ar apático e desalentado, é perfeitamente coerente com a atmoesfera do filme, o que reforça ainda mais a teoria de que ele é o narrador (nesse caso, um narrador implícito). O retrato da adolescência é contundente: a sexualidade vulcânica, a falta de objetivos claros, a energia dispersa, tudo está no lugar, desde que o espectador se lembre que a vida adolescente é filtrada pelos olhos do personagem de Rourke, um cara jovem mas experiente, que já viu de tudo – e não gostou muito do que viu. É a chegada dele à cidade que confere sentido a todo o resto, no filme.
Ademais, o retrato da juventude pintado por Coppola é por vezes cruel. Rusty e o irmão-lenda, por exemplo, têm objetivos distintos, e sabem que dificilmente conseguirão cumpri-los. Rusty quer virar uma lenda e ser tão respeitado quanto o irmão mais velho; o Motorcycle Boy, pelo contrário, só deseja descer do pedestal e viver uma vida comum. Um irmão quer ser o outro, embora ambos saibam que as chances disso acontecer são ridículas. Coppola filma tudo com senso perfeito de desorientação e apatia, incluindo ainda um ingrediente misterioso, que é jogado no filme a partir do utilização esporádica de cor.
Elementos coloridos só aparecem duas vezes em “O Selvagem da Motocicleta”. A primeira é no peixe que empresta o nome ao título original (no Brasil, chamamos de Beta). A metáfora entre o personagem de Mickey Rourke e o peixe briguento não é sutil, mas o segundo uso da cor – os reflexos de Rusty James em um carro, na cena final – admite um grande número de interpretações. Fico com a mais simples: talvez o rapaz esteja, naquele momento traumática, atingindo a idade adulta, e assim abandonando a visão preto-e-branca da juventude. É uma possibilidade. “O Selvagem da Motocicleta” é um filme estranho, mas belo, que merece uma conferida atenta.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/selvagem-da-motocicleta-o/
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