
Apesar da trilha sonora equivocada e onipresente de Philip Glass, drama sobre abusos emocionais traça belo estudo de personagens
Por: Rodrigo Carreiro
Adaptação cinematográfica de um premiado romance, “Notas Sobre um Escândalo” (Notes on a Scandal, EUA, 2006) poderia ser um drama sobre abusos sexuais cometidos por um adulto contra uma criança. O tema, que reflete um dos males de nossa época, está na ordem do dia há alguns anos. Tem sido explorado insistentemente, sob diversos ângulos, em filmes como “O Lenhador” (2004) e “Pecados Íntimos” (2006). O roteirista Patrick Marber e o diretor Richard Eyre, contudo, mostram coragem ao escolher o caminho mais difícil, e deixam o tópico polêmico em segundo plano. Assim, o filme mantém fidelidade ao texto da escritora Zoe Heller, abordando outro tipo de abuso – o emocional, praticando entre adultos – e funcionando, de quebra, como sólido estudo de personagem.
Isto significa que “Notas Sobre um Escândalo” não é sobre Sheba Hart (Cate Blanchett, excelente), a professora de Cerâmica que se envolve sexualmente com um aluno de 15 anos (Andrew Simpson), numa escola pública de Londres. O personagem principal é outra professora: Barbara Covett (Judi Dench, espetacular), amarga e solitária sexagenária que, enamorada da bela e jovem colega, se vê sem querer na posição de confidente da loira de olhos cintilantes, assim que descobre sobre a paixão proibida. A situação, constrangedora e difícil para a maioria das pessoas, é vista como um presente do destino pela mulher mais velha. O terrível segredo dá a Barbara a oportunidade de exercer um tipo muito mais sutil de abuso emocional. Ela se aproveita da informação confidencial para fazer uma bem disfarçada chantagem, e se manter sempre próxima de Sheba.
Para auxiliar a platéia a entrar na mente maquiavélica da protagonista, o roteirista Patrick Marber (responsável pelos diálogos afiados de “Closer”, outra arrasadora crônica sobre chantagens emocionais) faz de Barbara a narradora do longa-metragem. A narração vem de um diário impecavelmente organizado, em que a professora registra pensamentos e comentários – quase sempre duros, arrogantes, venenosos – e classifica seus dias (bons, ruins, sublimes, terríveis) com brilhantes estrelinhas douradas. Impelida pela dor crônica causada por anos de solidão extrema, que esconde cuidadosamente sob uma aparência austera e impenetrável, Barbara é uma pessoa invejosa e vingativa. Cheia de preconceitos, ela está sempre avaliando as pessoas com rigor depreciativo.
Com uma direção cuidadosa, o veterano Richard Eyre (“Íris”, “A Bela do Palco”) mergulha na alma sombria de Barbara. Ele dispensa maniqueísmos para mostrar as duas professoras não como monstros insensíveis, mas como seres muito humanos, frágeis e carentes. A grande qualidade do filme está em mostrar como a moral é algo complexo, volátil e difícil de definir. De formas diferentes, as duas agem com total consciência de que estão cometendo abusos. Nenhuma delas consegue conter o impulso de persistir no erro, e sem perceber vão se tornando, aos poucos, uma refém da outra. Por opção, Eyre insiste em ir mais fundo na história de Bárbara do que na de Sheba. Talvez distorcida por anos a fio de solidão inclemente, a consciência da professora mais velha sabota as ações cometidas por ela, de maneira que Barbara se torna, gradualmente, uma pessoa repulsiva – ainda que, ao fundo, o filme nunca deixe de apostar que ela não passa de uma velha corrompida pela falta de amor.
O retrato de Sheba é menos incisivo. A narrativa solta pistas sobre os motivos para ela agir de forma tão irresponsável – trata-se de uma mulher casada com um homem 20 anos mais velho, que possui uma relação tumultuada com o pai e tem dois filhos adolescentes, um deles sofrendo de Síndrome de Down, que fazem de sua vida algo estéril e entorpecido. O envolvimento da loira com o adolescente traz, para a vida dela, um senso de excitação que ela não experimentava há anos – e logo ela se vê viciada nas emoções fortes que a relação proporciona. Marber e Eyre, porém, mantêm certa distância entre Sheba e o espectador, para que este não esqueça qual é o abuso que está no centro do conflito.
“Notas Sobre um Escândalo” poderia ser uma pequena obra-prima se não incorresse em certos defeitos de narrativa, que acabam por prejudicar o resultado final. O maior problema reside na trilha sonora invasiva e irritante de Philip Glass. O maestro insiste em compor temas construídos com violoncelos e instrumentos de corda, que na linguagem cinematográfica significam “suspense” – e o espectador, induzido de forma equivocada, espera que a próxima cena traga algum desdobramento sangrento do drama, algo que nunca ocorre.
Além disso, inexplicavelmente, o diretor Richard Eyre insiste em enfiar música em praticamente todas as cenas, amortizando o efeito corrosivo dos excelentes diálogos. O recurso torna o filme um tanto pomposo e exagerado. Para completar, no terço final, o longa-metragem cai de braços no melodrama, investindo em um final circular que destoa bastante da sobriedade dos dois primeiros atos. Ainda assim, um bom exemplar de filme adulto.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/notas-sobre-um-escandalo/
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