segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Antes Que O Diabo Saiba Que Você Está Morto


Sidney Lumet mostra vitalidade depois dos 80 anos e filma um belo híbrido de thriller de roubo com drama de família
Por: Rodrigo Carreiro

Os primeiros anos do novo milênio trouxeram uma contradição curiosa à indústria cinematográfica. Trata-se de uma época em que os grandes estúdios passaram a visar, cada vez mais, as platéias jovens, gerando uma alteração estrutural na sintaxe cinematográfica, agora contaminada pela linguagem dos videogames e de novas tecnologias, como a Internet. Contraditoriamente, foi neste panorama que vimos o ressurgimento de cineastas veteranos, clássicos, que pareciam fadados ao esquecimento. Mike Nichols (“Closer – Perto Demais”) e William Friedkin (“Possuídos”), cujas carreiras andavam em banho-maria, fizeram grandes filmes. E eis que o mestre Sidney Lumet, autor de obras-primas como “Doze Homens e uma Sentença” (1957) e “Dia de Cão” (1975), nos premia com um belo híbrido de thriller de roubo e drama de família: “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto” (Before the Devil Knows You’re Dead, EUA, 2007).
O longa-metragem investe numa trama labiríntica, não-cronológica, que segue três personagens diferentes e por vezes apresenta as mesmas ações, só que vistas pela perspectiva de cada um dos co-protagonistas. A técnica é a mesma utilizada por
Quentin Tarantino no terceiro ato de “Jackie Brown” (1997) e nos roteiros do habilidoso escritor mexicano Guillermo Arriaga. Curiosamente, o filme foi escrito por um roteirista novato, Kelly Masterson, e conduzido por um diretor que sempre preferiu uma forma mais clássica de narrar. Mesmo assim, o resultado é excelente, e confirma o domínio absoluto do cineasta sobre o material que tinha em mãos. “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto” funciona bem como filme de roubo, no estilo das histórias boladas por David Mamet, e como duro drama sobre os acertos de conta de uma família cheia de ressentimentos.
O enredo é bastante simples. Dois irmãos que enfrentam dificuldades financeiras (Philip Seymour Hoffman e Ethan Hawke) decidem realizar assalto a uma joalheria de subúrbio, mas o plano dá errado. A presença inesperada de uma senhora de idade na loja, no momento do crime, dispara uma série de eventos encadeados sob os quais os dois infelizes perdem completamente o controle, tornando-se mais e mais encrencados a cada minuto. Além dos óbvios e inevitáveis problemas legais, os irmãos são obrigados a lidar com dívidas, chantagistas, mulheres insatisfeitas, tragédias familiares e toda sorte de complicações inesperadas. Trata-se de um enredo construído bem ao feitio dos irmãos Coen, mas sem o humor negro que caracteriza as produções de Joel e Ethan. Ao invés do senso de absurdo, Sidney Lumet privilegia o trabalho dos atores, o que é algo natural em se tratando de um cineasta que sempre teve ligação íntima com o teatro.
A fama de Sidney Lumet como bom diretor de atores, aliás, o ajudou a reunir um ótimo elenco a baixo custo. No papel do mais ativo dos dois irmãos, Philip Seymour Hoffman dá show, demonstrando o grande ator que é ao mostrar a lenta jornada do seu personagem, sujeito tenso e autoconfiante que se torna desesperado aos poucos. Ethan Hawke não é tão bom, mas não compromete no papel do irmão mais frágil e indeciso. Surpresa mesmo é Marisa Tomei, que apesar de ser dona de um Oscar jamais conseguiu apresentar um grande desempenho. Aqui, além de transpirar sensualidade, ela convence perfeitamente no papel da mulher ansiosa que sabe estar vivendo os últimos anos de beleza antes da decadência física inevitável, e entende que precisa “tirar o pé da lama” rapidamente, antes que seja tarde demais. Todos juntos constroem uma idéia bastante sólida, apesar de não muito convencional, de “família” (interessante notar como vários bons filmes da mesma safra, como “O Gângster” e “Os Donos da Noite”, discutem o conceito de família).
Como de hábito, Lumet realiza um trabalho discreto no tratamento visual, dotando a narrativa de uma atmosfera realista e deixando que a história fale por si só. O trabalho dele é muito seguro. Apesar da montagem fragmentada e do grande número de personagens, a narrativa é sempre clara e limpa, e o espectador não tem nenhum problema para ir identificando os elos afetivos existentes entre os personagens. De fato, Lumet usa a quebra da cronologia para dosar o acesso da platéia às informações essenciais, de forma que cada nova cena (principalmente aquelas que narram eventos já vistos antes de uma nova perspectiva) traz uma pequena surpresa extra ao espectador, obrigando-o a realinhar mentalmente o que já foi visto antes e envolvendo-o emocionalmente com os dramas pessoais de cada personagem. Este é um raro filme policial em que não existem heróis e vilões. Há apenas vítimas.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/antes-que-o-diabo-saiba-que-voce-esta-morto/

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