
Produção de J.J. Abrams simula vídeo caseiro feito por personagens de um clássico filme de monstro
Por: Rodrigo Carreiro
Era novembro de 2006 quando um trailer misterioso começou a ser exibidos nos cinemas do mundo inteiro. As imagens, gravadas com uma câmera amadora que não parava de tremer, mostravam uma grande explosão no centro de Nova York, em meio a uma gritaria infernal. De repente, um enorme bloco de concreto aterrisava no meio da multidão, com um estrondo. Bastavam alguns instantes para que o rochedo fosse reconhecido – era a cabeça da Estátua da Liberdade. Uma imagem de impacto, turbinada pela ausência de informações sobre o que teria causado tal desastre. Fim do trailer, e início de uma enorme onda de perguntas que varreu a Internet durante os meses seguintes: que filme era aquele? “Cloverfield – Monstro” (EUA, 2008) é a resposta.
Concebido pelo produtor da série “Lost”, J.J. Abrams, o longa-metragem foi vendido pelo próprio, para os estúdios Universal, a partir de uma sucinta e fiel descrição: “A Bruxa de Blair” encontra Godzilla em um filme de Cameron Crowe. Os mais incrédulos podem até contestar a terceira e última citação (Abrams está se referindo aos 15 minutos iniciais), mas é inegável que “Cloverfield” entrega exatamente aquilo que promete: um filme de monstro filmado sob a perspectiva de alguém que está no meio do caos. O rigor formal com que o diretor Matt Reeves segue esta perspectiva, sem abandoná-la por um segundo sequer, é a maior qualidade de “Cloverfield”, mas também pode ser um motivo forte para que parte do público se irrite ao assisti-lo.
J.J. Abrams teve a idéia de “Cloverfield” enquanto estava no Japão, promovendo “Missão Impossível 3”, que havia dirigido em 2005. Durante a viagem, ele reservou um tempinho para ir a uma loja de brinquedos, comprar bonecos de Godzilla para o filho. Meditando sobre a incrível penetração do lagarto gigante na cultura pop japonesa, Abrams pensou que seria interessante trabalhar o conceito do filme de monstro de uma forma diferente, original. Ele pensou em outro fenômeno pop, o site de vídeos amadores You Tube. Foi a deixa para unir os dois conceitos num único produto: e se o filme recriasse a clássica trama da invasão de uma metrópole por um monstro de origem desconhecida, só que contada do ponto de vista de um personagem anônimo que, bem no olho do furacão, decidisse ligar a câmera de vídeo e gravar o caos a sua volta?
Pois “Cloverfield” simula exatamente isso: o vídeo caseiro feito por personagens de um clássico filme de monstro. A história começa durante a festa de despedida de Rob (Michael Stahl-David), jovem executivo que recebeu uma promoção e está de malas prontas para o Japão. A longa seqüência, de 15 minutos, apresenta meia dúzia de personagens, todos na faixa dos 25 anos, e estabelece os elos afetivos entre eles. Rob é apaixonado por Beth (Odette Yustman), ela também gosta dele, mas os dois não conseguem se acertar com a viagem no meio. Hud (T.J. Miller) é o melhor amigo dele, e está com a ingrata incumbência de registrar a festa em vídeo. Hud tem uma queda por Marlena (Lizzy Caplan), amiga do casal firme Lilly (Jessica Lucas) e Jason (Mike Vogel), irmão de Rob. A farra da turma é interrompida quado um terremoto causa um blackout em Manhattan por alguns instantes.
Bem, eles pensam que é um terremoto. Quando todos sobem ao terraço para conferir o que houve, explosões começam a sacudir Nova York. Ouve-se urros guturais, edifícios são derrubados, helicópteros militares não demoram a disparar mísseis contra algo que não se pode ver. Ataque terrorista, talvez? Enquanto o pânico, as explosões e a gritaria transformam tudo num grande caos, Rob decide resgatar Beth, que sofreu um acidente no prédio dela e não tem condições de se mover sozinha para um local seguro. Durante os 70 minutos seguintes, acompanhamos a correria desses seis jovens por ruas, prédios, escadarias escuras, lojas sendo saqueadas e estações vazias de metrô, enquanto eles descobrem aos poucos o que está causando tamanha destruição – um ser monstruoso de 60 ou 70 metros de altura, aparentemente indestrutível. O bicho ainda traz junto de si, como hospedeiros, uma série de criaturas que parecem caranguejos de um metro.
Detalhe: todas as imagens provêm da câmera amadora de Hud. Isso quer dizer que “Cloverfield” é integralmente composto por longas tomadas em que a escuridão e o trepidar constante da câmera impedem o público de compreender o que está acontecendo. Nos cinemas, é comum que parte da platéia tenha enjôos e dor de cabeça, por não se acostumar com o teor mambembe das imagens. O enredo lembra demais a versão norte-americana de “Godzilla” (1998), só que adotando o ponto de vista de “A Bruxa de Blair”. A semelhança excessiva com este último, aliás, é o grande ponto negativo da produção, pois copia do sucesso de 1999 não apenas o esqueleto narrativo, mas também a conclusão – o clímax é descaradamente decalcado, ao ponto do plágio – e até mesmo o marketing-guerrilha, que utiliza com inteligência o potencial viral da Internet.
Por outro lado, “Cloverfield” é extremamente bem filmado, dentro de sua proposta de investir em imagens com aparência amadora. Nos 85 minutos de projeção, os momentos de caos frenético e intensidade feroz são contrabalançados com instantes de calmaria, a cada 10 ou 15 minutos, de forma que os protagonistas (e a platéia) possam respirar e discutir o que está rolando. Ainda assim, na maior parte da ação, a platéia é obrigada a reordenar os sentidos e, apoiando-se principalmente no som (respiração ofegante, gritos, sirenes, tiros, explosões), interpretar aquilo que está acontecendo.
O trepidar constante da câmera e a ausência de enquadramentos impedem que o espectador consiga ver a ação com nitidez. O resultado é uma sensação genuína de urgência, de excitação frenética, de caos descontrolado – a sensação exata de estar no centro de uma situação incontrolável, impossível de compreender e extremamente perigosa. Se um monstro de verdade efetivamente atacasse uma metrópole, a impressão de uma testemunha seria exatamente aquilo que se vê em “Cloverfield”. Nesse aspecto, a produção acerta o alvo em cheio sendo bem mais radical do que “A Bruxa de Blair” (lembre-se de que naquele filme os protagnistas eram estudantes de cinema, e portanto sabiam operar os equipamentos com certa destreza).
Um dado que merece ser destacado é a clareza da narrativa, obtida graças à montagem eficiente e à condução segura do enredo, por parte do diretor Matt Reeves. Ele usa os 15 minutos iniciais com sabedoria e agilidade, obtendo ali o máximo de empatia entre público e personagens, ao mesmo tempo em que estabelece facilmente a natureza das relações entre eles (quem gosta de quem, quem tem ciúmes de quem, etc.). Uma sacada muito criativa é a idéia de que a gravação está sendo feita por cima de um filme caseiro de Rob com a namorada, Beth. De tempos em tempos, quando a câmera é desligada e reiniciada, conseguimos ver alguns segundos das imagens que estavam na fita antes – ou seja, os momentos felizes do casal, um mês antes. A tática evita que a platéia esqueça quem são os protagonistas e quais as motivações que os movem.
Além disso, a fotografia (ou seja, o planejamento da iluminação) de por Michael Bonvillain é muito bem bolada, já que usa a escuridão e a falta de enquadramentos para esconder a aparência do monstro. Sugerir mais do que mostrar explicitamente é um truque que os bons trabalhos do gênero (“Tubarão” permanece o melhor exemplo) sempre usaram para amplificar o suspense e realçar o medo do público. De fato, até o clímax do filme, não há uma única tomada em que se consegue ver o monstro inteiro, dos pés à cabeça – vê-se apenas uma cauda aqui, uma cabeça acolá, uma sombra se movendo. O roteiro ajuda nesta tarefa, ao providenciar explicações lógicas para que tenhamos luz em momentos de suposta escuridão total, como quando o grupo explora uma estação de metrô e utiliza a lâmpada infravermelha da câmera para tentar espiar a origem de barulhos ameaçadores (isso faz a platéia poder ver aquilo que só o operador da câmera consegue ver, ponto de vista que sempre gera tensão extra). “Cloverfield” prova, de novo, que criatividade e inteligência contam mais do que o orçamento, quando se trata de criar filmes interessantes.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/cloverfield-monstro/
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