
Biografia de um fictício personagem amoral com um dom extraordinário mistura thriller e drama de época
Por: Rodrigo Carreiro
Uma das tarefas mais difíceis para qualquer cineasta é conseguir elaborar uma maneira visual de sugerir as sensações geradas por alguns dos cinco sentidos humanos. Tato e olfato, em particular, representam um desafio quase intransponível: como representar visualmente aquilo que sentimos quando tocamos algo que nos emociona? Mais complicado ainda é reproduzir um odor maravilhoso sem poder recorrer ao olfato. Este foi o desafio primário enfrentado pelo diretor alemão Tom Tykwer para filmar “Perfume – A História de um Assassino” (Alemanha/França/Espanha, 2006), mistura de filme de época com thriller macabro, baseada em um best-seller literário de 1985.
Primário, mas não o único. O romance de Patrick Süskind vendeu 15 milhões de exemplares em 40 línguas. O recluso autor passou anos recusando ofertas para vender os direitos do livro, por um motivo mais que prosaico: queria ver ninguém menos que Stanley Kubrick transformá-lo em filme. A propósito, Kubrick chegou a analisar a possibilidade, mas afinal decidiu que a história era infilmável, exatamente porque tratava das sutilezas do olfato. O diretor de “Laranja Mecânica” concluiu que não fazia sentido levar às telas uma história sobre cheiros, já que não podia fazer a platéia senti-los. Ele não acreditava nas chances de poder evocar apropriadamente as maravilhas olfativas utilizando apenas imagens e sons.
Após a morte do cineasta, em 1999, Süskind finalmente concordou com o filme. O produtor Bernd Eichinger lhe pagou 10 milhões de Euros, e esmerou-se em costurar uma complicada produção internacional, com fundos vindos de financiadores franceses, espanhóis e alemães. “Perfume” acabou por se tornar o filme mais caro já produzido em continente europeu, com orçamento de US$ 65 milhões. De fato, cada centavo desta quantia fabulosa pode ser visto na tela, com enorme número de externas (filmadas nas ruas centenárias de Praga, na República Checa), recriação impecável dos cenários (a feira livre de Paris, as ricas perfumarias, as ruas escuras e sujas da área portuária da capital francesa, os campos floridos da cidade de Grasse) e um improvável clímax, que reúne centenas de figurantes em uma seqüência apoteótica. Há também uso abundante de gruas e trucagens digitais caríssimas para criar elaborados movimentos de câmera, que conferem à narrativa a atmosfera épica e imponente de uma grande produção.
Compensar os custos proibitivos de um filme tão gigantesco custou ao cineasta Tom Tykwer (“Corra Lola, Corra”), escolhido para dirigir a obra, algumas concessões. O filme teve que ser falado em inglês, apesar de a trama se passar na França do século XVIII; parte do elenco teve que ser recrutado entre rostos conhecidos, vindo diretamente de Hollywood (Dustin Hoffman, Alan Rickman), para atrair mais público. A ação também precisou seguir fielmente a história contada no livro, acrescida de um toque místico-existencial (o trecho em que o protagonista vai viver numa caverna) e nudez feminina (meio mórbida, já que as garotas estão quase sempre mortas). Tudo isso para aumentar as chances de conquistar as platéias internacionais, especialmente o público norte-americano, de modo que os investidores pudessem recuperar o investimento e obter lucro.
Mesmo com tantas exigências da parte dos produtores, Tykwer conseguiu um resultado interessante. Ele filma a história do fictício Jean-Baptiste Genouille (Ben Wishaw), um rapaz pobre e ignorante brindado com extraordinária habilidade olfativa na tumultuada Paris pré-Revolução Francesa, com montagem ágil e senso estético um pouco exagerado. A opulência visual é tão requintada e estilizada que torna o resultado um pouco kitsch, com explosões de cores básicas nas cenas mais ensolaradas, e muitas sombras/tons pastéis nos trechos noturnos. Mesmo assim, há tomadas panorâmicas muito bonitas, que parecem ter saído das telas de pintores como Rembrandt e Caravaggio. O visual lembra um pouco “Amèlie Poulain”, só que situado na França de 200 anos atrás.
O maior desafio de Tykwer, como dito antes, foi encontrar uma solução visual para expressar o êxtase do protagonista quando estimula o olfato. Ele conseguiu isto a partir da montagem. Primeiro, acerta ao ambientar o prólogo em locais fétidos, como a feira livre de Paris (“o lugar mais fedorento do mundo”), sempre enfatizando o grotesco. As imagens da infância de Genouille, em “Perfume”, são sempre em locais cheios de lixo e sujeira, provocando mal-estar na platéia. Quando o longa-metragem entra no segundo ato, e o rapaz passa a freqüentar perfumarias e ambientes da nobreza, o filme nos bombardeia com closes fechados de narizes e objetos cheirosos (rosas, laranjas) em plano/contraplano, quase sempre em muita câmera lenta. O efeito pretendido é de realçar, através da harmonia e das cores, um paraíso de cheiros, em contraponto ao inferno de nojo da primeira parte. Funciona.
Além disso, Tykwer não tem medo de usar toda a primeira metade para desenvolver o personagem e criar clima. Por isto, a ação que o título do filme nos promete demora um pouco para se concretizar. No fundo, não se trata de um thriller nos moldes tradicionais, mas de um estudo de personagem incomum – um sujeito frio e amoral, perturbado por um dom quase sobrenatural, que acabou por lhe alienar do resto da humanidade e interferiu em sua capacidade de sentir emoções. Ou seja, embora reúna características do thriller e do drama de época, realiza mais do que um amálgama dos dois gêneros. De resto, há ótimos atores – merece destaque especial a participação de Dustin Hoffman, como o criador de perfumes que ensina os macetes da profissão a Genouille – e um final absolutamente inesperado (e interessante).
http://www.cinereporter.com.br/dvd/perfume-a-historia-de-um-assassino/
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