terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Iluminado

O escritor Stephen King sempre fez questão de afirmar, com todas as letras, que gosta da versão do cineasta Stanley Kubrick para “O Iluminado” (The Shining, EUA, 1980), mas que não considera o filme parecido com o romance que lhe deu origem. Ele está certo. O resultado final de “O Iluminado” tem muito de Kubrick e pouco de King. O genial cineasta, que em 1980 já desfrutava do status de lenda viva da Sétima Arte, transformou a história trivial de assombração de Stephen King em um assustador estudo psicológico da loucura. “O Iluminado” é um dos maiores filmes de horror de todos os tempos, e possui um subtexto e uma densidade psicológica que essas obras raramente conseguem sustentar.
A abertura de “O Iluminado”, com lindas tomadas panorâmicas (filmadas a partir de um helicóptero) que mostram um carro trafegando em uma montanha repleta de neve e florestas, possui uma beleza plástica de tirar o fôlego. Ao mesmo tempo, auxiliada pela trilha sonora macabra – os fraseados musicais lembram uma pessoa gritando de dor –, exibe um toque sinistro. É a abertura perfeita para a história de Jack Torrance (Jack Nicholson), um escritor com bloqueio criativo. Jack é o homem que está dirigindo o automóvel pelos corredores gelados e desertos. Ele está indo a uma entrevista de trabalho. Deseja ser contratado pelos donos de um enorme hotel, no topo da montanha, para tomar conta do lugar durante o período de inverno, quando a estação turística fecha as portas.
Jack Torrance acha que o emprego vai ajudar a sustentar a mulher, Wendy (Shelley Duvall), e o filho pequeno, Danny (Danny Lloyd). O motivo principal do interesse, contudo, é menos o dinheiro e mais o isolamento. Jack quer silêncio. Ele acha que uma temporada longe do barulho da cidade grande pode lhe ajudar a vencer o bloqueio criativo e voltar a escrever. Daí a importância da belíssima seqüência sem cortes que inicia o filme de Kubrick: o espectador sabe que ele não poderia encontrar um local mais desolado do que aquele. O que ele vai descobrir depois é que, durante as fortes nevascas do inverno, o trânsito nas estradas será interrompido e, então, a comunicação com o mundo exterior ficará praticamente impossível.
Assim, Stanley Kubrick isola seus personagens do convívio social. A exceção é o pequeno Danny, que possui um dom especial para se comunicar, de maneira telepática, com outras pessoas – como o cozinheiro do hotel, Dick Hallorann (Scatman Crothers) – que compartilham com ele desse dom. Danny é como uma antena psíquica e logo percebe que há algo de errado com o sinistro Overlook Hotel. Ele passeia pelos corredores com um pequeno triciclo, em algumas seqüências fascinantes, do
ponto de vista da fotografia. Nessas cenas, que se tornaram famosas, Kubrick e o fotógrafo John Alcott elevaram o nível do que podia ser feito com uma câmera subjetiva. As delirantes tomadas em que a câmera assume a perspectiva de Danny estão entre as mais assustadoras do filme.
Há um segredo que envolve um dos quartos do hotel. Danny percebe o problema antes dos outros, mas também ele é sinistro. Possui um amigo imaginário chamado Tony (“a criança que mora dentro da minha boca”), e conversa com o dedo indicador da mão direita, fazendo uma voz gutural e provocando arrepios de medo no espectador. Enquanto isso, o isolamento do lugar começa a provocar delírios e perturbações psicológicas evidentes em Jack. O filme não explicita a razão dissocontudo. Trata-se talvez do maior de todos os acertos de Kubrick: ele não cede à tentação de explicar a natureza das visões macabras que Danny, e também Jack, passam a ter dentro do Overlook. Fica a cargo da platéia imaginar se a insanidade do escritor, e os sonhos do pequeno, têm raízes sobrenaturais ou são apenas fruto dos efeitos da solidão.
É impossível falar de “O Iluminado” sem mencionar a fantástica performance de Jack Nicholson no papel principal. Nicholson sempre demonstrou um talento especial para personagens perturbados, loucos ou rebeldes (convém não esquecer do advogado drogado de “
Sem Destino” ou do vagabundo de “Um Estranho no Ninho”), mas atinge um nível insuperável de performance em “O Iluminado”. Sua presença é tão magnética que merece ser colocada na galeria dos grandes momentos da história do cinema, em especial no último terço do filme, quando seu Jack Torrance pira de vez. Já o jovem Danny Lloyd, frio como uma pedra, oferece o contraponto exato para a performance emocional de Shelley Duvall, uma magrela com os nervos à flor da pele. Os três estão esplêndidos; as performances são mais uma prova da excelência de Kubrick na direção de atores.
Como de praxe, porém, não são apenas as atuações e a fotografia que se destacam. Kubrick arrasa em literalmente todas as frentes. Acerta em cheio da luz, por exemplo – ele mandou instalar lâmpadas somando um milhão de watts em cada janelão do cenário, para produzir aquele tipo de luz branca e difusa típica do inverno. Utiliza a edição de som de maneira soberba, como nas seqüências de Danny no triciclo, em que o veículo alterna ruídos altíssimos (ao passar sobre tacos de madeira) e silêncio completo (quando sobre tapetes). E a música dissonante, cheia de acordes altos e inesperados, cria uma atmosfera de tensão pelo inesperado que repercute nas imagens, de forma que a platéia nunca sabe quando ou de onde virá o próximo susto. Uma perfeição.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/iluminado-o/

Nenhum comentário:

Postar um comentário