
A expressão film noir evoca uma porção de elementos: bares, detetives, mulheres fatais, revólveres e fumaça, muita fumaça. Com exceção do último, nenhum deles está em “O Homem Que Não Estava Lá” (The Man Who Wasn‘t There, EUA, 2001). Pode até parecer um paradoxo, mas acredite: o trabalho dos irmãos Coen é um legítimo representante dessa quase extinta categoria cinematográfica. E não somente isso. “O Homem Que Não Estava Lá” é uma obra-prima, um filme de técnica meticulosa, roteiro brilhante, interpretações sutis – tudo o que se pode exigir de cinema classe A, do tipo que não se faz mais hoje em Hollywood.
O leitor pode até perguntar onde estaria o elemento noir no filme de Joel e Ethan Coen, mas a pergunta cala logo nos primeiros minutos da projeção. Cada fotograma da obra é puro film noir, na ambientação, no clima onírico, na melancolia que exala da tela como um perfume suave e, sobretudo, na magistral direção de fotografia de Roger Deakins. Claro, o filme foi magnificamente fotografado em preto-e-branco, e somente esse detalhe já é capaz de transformá-lo imediatamente na mais perfeita homenagem às películas que retratavam a Califórnia sombria e decadente da década de 1940.
Vale ressaltar que o preto-e-branco de “O Homem Que Não Estava Lá” não é um preto-e-branco comum, filmado displicentemente. Nada disso. Depois de uma pesquisa exaustiva, o fotógrafo Roger Deakins tomou algumas decisões técnicas que influenciaram brutalmente o resultado final. Primeiro, ao contrário do normal, ele decidiu filmar com negativo colorido e somente durante o processo de revelação abolir as cores. Essa técnica ressaltou tremendamente a expressão facial e o olhar dos atores, jogando-os num primeiro plano quase impossível de se ver numa obra colorida.
Além disso, Deakins usou várias fontes de luz, vindas de diferentes direções, para iluminar cada uma das seqüências e deixar pessoas e objetos imersos em sombras. O resultado desse trabalho perfeccionista, que exigiu dezenas de horas de testes de figurino e locações para garantir o resultado, é capaz de deixar boquiaberto o mais desatento dos espectadores. O branco de “O Homem Que Não Estava Lá” é mais alvo do que lençol em comercial de sabão em pó. O preto, mais negro do que barril de petróleo iraquiano. E o tom chumbo da fumaça – sagrada fumaça, ingrediente indispensável num verdadeiro film noir – domina o que resta do mundo das tonalidades intermediárias.
Falar em fumaça, aliás, é falar em Billy Bob Thornton. Em mais uma atuação de gala, ele interpreta o barbeiro Ed Crane, um sujeito melancólico, caladão. Além de cortar cabelos numa cidadezinha californiana em 1949, a única coisa que Ed faz é fumar (cigarros Chesterfield sem filtros, que expelem fumaça em abundância fora do normal) e suportar os outros. No trabalho, ele agüenta a matraca do cunhado Frank (Michael Badalucco). Em casa, atura a frieza e as traições da mulher, a contadora Doris (Frances McDormand, esposa do diretor Joel). Até que, num dia comum, um cliente (Jon Polito, hilariante sob uma peruca à Cauby Peixoto) entra na barbearia e começa a falar sobre abrir um negócio no ramo da lavagem a seco. E isso muda tudo.
Sabe-se lá por que cargas d‘água, Ed vê na fictícia lavanderia uma chance de mudar de vida. Assim, decide chantagear o patrão e amante da esposa, Big Dave (o subestimado James Gandolfini, da telessérie Família Soprano). Parece simples, mas as coisas logo vão sair do controle e atirar tanto Ed quanto as pessoas que lhe rodeiam numa seqüência estonteante de acontecimentos insólitos. De prisões a acidentes, acontece de tudo. No caso dos irmãos Coen, que escreveram juntos o belo roteiro, a palavra “inimaginável” é exata. “O Homem Que Não Estava Lá” desafia o espectador a todo instante a prever o que irá acontecer a seguir, mas o filme sempre toma rumos completamente inesperados.
Como experiência cinematográfica, dá para dizer sem medo de errar: “O Homem Que Não Estava Lá” é um deleite para olhos e ouvidos. Ouvidos sim, porque a bela música de Beethoven, que permeia os 116 minutos de exibição, contribui para deixar o clima ainda mais melancólico. Feito para homenagear os romances de James Cain (de O Destino Bate à Sua Porta e importante escritor noir), o filme dos irmãos Coen cumpre perfeitamente a proposta inicial e vai além: inscreve seu nome na galeria dos grandes momentos da respeitável carreira da dupla.
http://www.cinereporter.com.br/dvd/homem-que-nao-estava-la-o/
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