quarta-feira, 18 de novembro de 2009

New York, New York


New York New York não triunfas aqui, não triunfas em sítio nenhumPor: Vasco Câmara (Público)
A coca não ajudou. Um dia, havia 150 extras à espera do grito de "Acção!", vestidos a rigor como nos musicais dos anos 40/50, enquanto o realizador no seu "trailer" se pendurava ao telefone no seu psicanalista.
Diz-se que naqueles tempos quando se saía para jantar, em vez de se dar gorjeta ao empregado, era "de rigueur" deixar uma linha de coca. Naqueles tempos, nos anos 70, Martin Scorsese morava em Mulholland Drive, Hollywood, tinha um crucifixo de madeira do século XVII pendurado no quarto e o crucifixo escondia um punhal - como uma personagem dos seus filmes, acossado pela culpa, parecia que esperava a catástrofe, que a rua lhe fosse cobrar pelos pecados (um dia a catástrofe bateria à porta...).
Essa casa, à prova de som, por onde muitos passavam sem ficarem (depois de verem 4 ou 5 filmes pela madrugada fora, depois de mergulharem no branco profundo), estava sempre às escuras e um sistema de ar condicionado evitava que se abrissem janelas. "Éramos vampiros. Era do estilo: "Oh não, o sol..." Nunca íamos para a cama antes das seis ou oito da manhã", contou Scorsese.
Isto não são histórias que se contam no DVD, edição especial, de "New York New York", mas contam-se, por exemplo, no incessantemente citado livro de Peter Biskind sobre a Hollywood dos anos 70, "Easy Riders, Raging Bulls", contam-se nos "Diários" de Warhol, mas também, para não termos a sensação de vasculhar em "gossip" disfarçada de "exposé", em "coisas" mais "sérias", como "The Art & Life of Martin Scorsese", de David Ehrenstein ("I was having personal problems and a bout with drugs"), ou em "Scorsese on Scorsese", de David Thompson ("I was having a bad time", o que resume muita coisa). Não é segredo, era esse o mundo de Scorsese quando mandou construir cenários e guarda-roupa que só existiam nos filmes do passado - portanto, fora da realidade, mas inventando uma realidade - e pôs nessa Nova Iorque do pós-guerra um homem e uma mulher, um saxofonista (Robert de Niro), uma cantora (Liza Minnelli), a arranharem-se por amor, dúvida, ciúme e rivalidade como se fosse "hoje" - queria juntar o artifício de um musical de Vincent Minnelli à sensibilidade contemporânea de John Cassavetes; queria os códigos de um género e ao mesmo tempo mandar às urtigas o peso da máquina e filmar a vida. Embora não haja histórias escandalosas no DVD desta edição especial, em dois discos, de "New York New York", passa pelos extras - na introdução do realizador, nas memórias de Liza, nos depoimentos (Irwin Winkler, produtor, Laszlo Kovacs, director de fotografia, Tom Rolf, montador, entre outros) convocados para o documentário "Histórias de Nova Iorque" - essa sensação de catástrofe. Como aconteceu a outros cineastas dessa geração, a ascensão preparou a queda, como um castigo para excessos, e no caso de Scorsese esse momento (o primeiro) foi "New York New York", no ano de 1977. Como aconteceu a Peter Bogdanovich ("Daisy Miller", 1974), Michael Cimino ("As Portas do Céu", 1980), Coppola ("Do Fundo do Coração", 1982), houve um filme, a catástrofe de um filme, que definiria o rumo de uma carreira e o futuro do cinema americano, que é este presente.
cinema e vida: um falhanço. Scorsese estava no auge das estima crítica depois de "Mean Streets" (1973), "Alice já não Mora Aqui" (1974) e "Taxi Driver" (1975, Palma de Ouro de Cannes). Chamavam-lhe "O Rei da Improvisação" e ele acreditou tanto que mergulhou num projecto que punha lado a lado coisas contraditórias, um argumento sem estar finalizado e uma estrutura de produção artística e técnica que emulava os filmes do passado, concretamente os musicais - Boris Leven, o director artístico, fora o homem que fizera os cenários de "Shanghai Gesture", "Gigante", "West Side Story". "Há uma altura em que nos sentimos demasiado importantes, pensamos que não precisamos de acabar o argumento, que podemos acabá-lo na rodagem. Claro, muitos tipos trabalham assim. Percebi que não sou um deles", disse Scorsese. Nos extras dos DVD, vê-se, através dos "takes" alternativos de uma mesma sequência, como DeNiro e Minnelli davam largas à improvisação, como "New York New York" assentou num equilíbrio tenso entre tempos diferentes, o dos métodos do cinema independente nova-iorquino e os da produção industrial da Hollywood clássica. E como essa tensão estava - ainda está - a rebentar em cada cena, fazendo deste magnífico musical uma obra de uma euforia triste e angustiada. Como está na estrutura, no conflito entre "musical" e "drama conjugal" - esta "edição especial" apresenta as versões de 163 e de 136 minutos (foi a versão da estreia oficial), sendo a maior diferença entre elas a reposição da integralidade do número musical "Happy Endings", o primeiro bloco a ser filmado, quase "filme dentro do filme", mas que ao longo da rodagem, e ao fio da improvisação, foi ficando de fora, como estrutura desadequada, e foi cortado.
O montador Tom Rolf fala, neste DVD, das suas dores de cabeça para montar as sequências, dar-lhes coerência interna; o produtor exemplifica como um gesto inadvertido de DeNiro - partiu uma janela - fez mudar toda uma sequência (a do casamento) e como isso gerou uma escalada em termos de produção: o acidente foi incorporado na sequência, o actor passou a ter que partir a janela, foram precisas várias janelas para serem substituídas em cada "take"...
"New York New York" era um filme muito pessoal para Scorsese: Jimmy Doyle (DeNiro) funcionava como duplo do realizador, na sua incapacidade de conciliar família e profissão, inebriado pelo seu talento mas sempre ameaçado na auto-estima. Diz-se que na personagem de Liza Minnelli estava uma versão das mulheres que partilharam a vida de Scorsese. Quando se sabe que Marty e Liza, ambos com relações conjugais (e Scorsese à beira de ser pai), começaram um "affair" na rodagem, chega-se à ideia do cinema de Scorsese como hipótese tumultuosa - por que cheia de afecto, mas profundamente dividida e consciente do falhanço - de juntar cinema e vida. Ao contrário de Robert Altman, por exemplo, que destruía os géneros, Scorsese, que desde miúdo fugia das ruas para se proteger nas salas escuras, como realizador injectava intensidade nos códigos da Hollywood clássica para chegar a um resultado ambivalente, que tanto abraçava como expunha o artificialismo de uma tradição, de uma herança. Fê-lo desde o febril "Mean Streets", a sua primeira longa-metragem, que tanto é uma homenagem à tradição de um género, o "filme de gangsters", explicitamente citada numa sequência em que os protagonistas vêm "The Big Heat", de Fritz Lang, como a recriação da vida de Scorsese e amigos em Little Italy - dimensão biográfica enfatizada no DVD do filme, que se encontra nos habituais circuitos de importação, uma "edição especial" que inclui um documentário, "Back on the Block", em que Scorsese regressa ao bairro e às figuras que inspiraram as personagens de "Mean Streets".
pós-star wars. Era este filme com cenários luxuosos, números musicais extravagantes e uma história contada de um ponto de vista contemporâneo (ou seja, final infeliz), até começou por dar origem a "rumores" entusiasmados. As primeiras projecções de teste foram positivas. Uma das montadoras, Marcia Lucas, voltava a casa e dava conta ao marido de um filme extraordinário prestes a estrear. ""New York New York" é um filme para adultos, o teu é um filme para crianças, ninguém o vai levar a sério". O marido de Marcia chamava-se George, e o filme dele chamava-se "Guerra das Estrelas". Lucas ficou preocupado (mas no livro de Biskind diz-se que Lucas está sempre preocupado com a competição) e até mandou "espias" aos visionamentos.
George não tinha que se preocupar. Ninguém quis ver "New York New York", até os críticos o abandonaram. "New York New York", canção, escrita por Kander e Ebb para Liza, não foi sequer nomeada para os Óscares, como se esperava, e em termos de imaginário público só passou a "existir" dois anos depois com a interpretação de Frank Sinatra. "If i can make it there/ I can make it anywhere...", dizia a canção. Foi o primeiro dos insucessos de Scorsese. Quando, com o êxito de "Star Wars", se estabelecia novo padrão e nova era, com descoberta de novo público, para o cinema americano.
O falhanço de "New York New York" significava o falhanço dos filmes que Scorsese (ou Coppola, ou Bogdanovich) estava a fazer em favor dos filmes que Lucas (e Spielberg) estava a fazer. ""Star Wars estava "in". Spielberg [com "Tubarão"] estava "in". Nós estávamos acabados", sentenciou Scorsese. Sobre a crítica aí implícita, Lucas responderia (e voltamos a Biskind): ""Star Wars" não matou a indústria nem a infantilizou, Os "filmes pipocas" sempre dominaram. Porque é que as pessoas vão ver esses filmes mesmo quando não são bons? Porque é que o público é estúpido? Não é culpa minha. Apenas percebi o que é que as pessoas gostam de ver, e Steven também percebeu".
Mas tudo mudara. Tudo mudou para Scorsese. O que se passou a seguir (e depois do insucesso seguinte, "O Toiro Enraivecido", que Scorsese disse ter realizado como se fosse o último da sua vida), toda uma obra se foi desenrolando como uma série de reajustamentos após a catástrofe. Na altura Scorsese disse ter percebido, afinal, qual era o seu "verdadeiro lugar no sistema - de fora, a olhar" e teve "que decidir se queria ou não continuar a fazer filmes". "O Aviador", o seu último, cujo DVD foi também agora lançado (outra "edição especial", cheia de extras sobre os vários passos de uma cadeia de montagem e em que Scorsese, não por acaso, mais parece "convidado" do que autor do filme), continua a sinalizar, no distanciamento e quase não implicação e atitude defesa com que é feita a recriação da Hollywood clássica, esse trauma do insucesso. Como se continuassem a ecoar os versos de uma canção: "If i can make it there [Hollywood, já não Nova Iorque]/ I can make it anywhere".

http://cinecartaz.publico.clix.pt/perfil.asp?id=135011

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