terça-feira, 17 de novembro de 2009

De Olhos Bem Fechados


Um pesadelo incômodo e perturbador. Esta é a impressão que fica na mente de quem assiste a “De Olhos Bem Fechados” (Eyes Wide Shut, EUA, 1999), o último trabalho dirigido pelo mestre Stanley Kubrick. O filme, longo e de enredo episódico, resume os acontecimentos de um par de noites surreais, vividos por um médico novaiorquino após uma dura discussão com a esposa. É o tipo de longa-metragem que esconde sua verdadeira questão – qual a verdadeira natureza da relação entre sonho e realidade? – por trás de uma máscara narrativa anticonvencional, hipnótica e fascinante.
À primeira vista, “De Olhos Bem Fechados” pode ser visto como um estudo sobre as relações conjugais. Os primeiros 30 minutos reforçam essa impressão. O espectador é apresentando a um casal bonito, culto, jovem e bem informado. Bill Harford (Tom Cruise) é um médico da alta sociedade de
Manhattan. Ele é casado com Alice (Nicole Kidman), escultora de prestígio. A dupla vai a uma festa chique na mansão de um conhecido, Victor (Sidney Pollack). Os dois flertam perigosamente com desconhecidos. Ela se deixa cortejar por um charmoso húngaro de cabelos grisalhos, rodopiando uma valsa no meio do salão. Ele se cerca por duas modelos de olhar guloso e bate papo na sala com as duas. O sexo domina as duas conversas, mas nenhum dos dois flertes vai adiante.
Na noite seguinte, o casal fuma maconha no quarto, antes de dormir, quando a questão dos flertes volta à tona. Incentivada pelo aditivo, Alice rompe a barreira tácita erguida pelos dois sobre o assunto e relata um breve episódio vivido nas férias do casal, no ano anterior. Ela afirma que, na ocasião, olhou para um oficial da Marinha, no saguão do hotel em que a família estava hospedada, e apaixonou-se tão perdidamente, mesmo sem sequer ouvir a voz dele, que teria largado Bill e a filha de imediato, se o homem houvesse pedido. Bill fica perturbado, mas não tem tempo de discutir o assunto. O telefone toca. É a filha de um paciente avisando-o da morte dele. Bill põe um sobretudo e vai à rua. É o início de um passeio impressionante pelas ruas de Nova York.
A narrativa é tão episódica quanto surreal. Bill visita a paciente e ouve dela outra
revelação surpreendente. Ainda mais desorientado, caminha sem rumo pelas ruas e dispara uma série de encontros surreais. Primeiro é uma prostituta, depois um pianista amigo de juventude, uma loja de fantasias, e uma festa secreta de uma seita pagã que, aparentemente, realiza orgias em que todos os convidados, homens e mulheres, usam máscaras. A madrugada bizarra se prolonga em uma segunda noite, em que Bill acerta contas, ou tenta acertar, com todos os que encontrou na noite anterior.
É difícil eleger qual a mais perturbadora de todas as visões do médico. Stanley Kubrick presenteia o espectador com uma coleção impecável de seqüências hipnóticas, cheias de mistério e atmosfera. Juntas, elas deixam o protagonista (e também a platéia) em uma espécie de transe. Tem, para isso, a ajuda inestimável de uma trilha sonora minimalista, executada por um piano que martela notas de forma insistente. O cântico macabro ouvido durante a cerimônia religioso-sexual, durante a festa, é a jóia da coroa. Misterioso, o tema fornece o exato toque sombrio que o público necessita para levar a cena a sério. A impressão é acentuada pela sensação estranha de ouvir personagens dialogando atrás de máscaras, de maneira que não se pode ver a expressão facial ou o movimento dos lábios das pessoas.
O verdadeiro tema do filme, que é a discussão sobre sonhos e realidade, fica escondido durante muito tempo, mas acaba sendo jogada nos olhos da platéia, em um diálogo que sintetiza o filme com absoluta clareza. O diálogo, reproduzido abaixo, parece dizer que um sonho, tomado como uma expressão do inconsciente de um indivíduo, é tão real quanto a própria realidade:
- Deveríamos ficar gratos por termos conseguido sobreviver a todas as nossas aventuras, tanto as reais quanto as sonhadas – diz um personagem.- Tem certeza disso? – pergunta outro.- Se tenho certeza? Tenho a mesma certeza de que a realidade de uma noite, para não dizer de uma vida inteira, pode ser toda a verdade. E nenhum sonho jamais é apenas um sonho.
Se você não entendeu essas palavras, pode ainda admirar a coleção enigmática de imagens que faz parte da película. Kubrick, por exemplo, ambientou seu filme na época do Natal, e virtualmente todas as seqüências do filme têm como testemunha um pinheiro adornado por bolas coloridas. Preste bem atenção: é o mesmo pinheiro, como acontece com o monólito negro em “2001”. Por que ele está ali? O que ele significa? Reflita e tente construir a sua própria teoria. Se preferir, farte-se com as belas tomadas pensadas por Kubrick, que utiliza uma iluminação especial capaz de ressaltar as cores básicas (vermelho, azul, amarelo). Essas duas estratégias alteram ainda mais a percepção da platéia, retirando das cenas o realismo habitual e acentuando o clima de sonho que permeia “De Olhos Bem Fechados”.

http://www.cinereporter.com.br/dvd/de-olhos-bem-fechados/

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