Coletânea com 33 curtas-metragens de diretores famosos celebra com lucidez o ato de ir ao cinema Por: Rodrigo Carreiro Uma breve descrição do conteúdo deste “Cada Um Com Seu Cinema” (Chacun Son Cinéma, França, 2007) é suficiente para fazer qualquer cinéfilo babar. São 33 curtas-metragens, de três minutos cada, assinados por grandes cineastas de todas as partes do mundo. Nomes quentes da atualidade (Alejandro Gonzáles Iñárritu, Walter Salles, Lars Von Trier, David Cronenberg), autores alternativos de prestígio (Atom Egoyan, Wong Kar-Wai) e gente com passado de respeito (Michael Cimino, Manoel de Oliveira, Jane Campion) comparecem. Como toda coletânea, o resultado final é bem irregular, com alguns curtas deliciosos e outros decepcionantes. Felizmente, a maioria dos cineastas captou a idéia principal – celebrar o ato de ir ao cinema – e entregou homenagens sinceras e tocantes à Sétima Arte. A concepção do projeto, de autoria do chefão do Festival de Cannes, Gilles Simon, deu liberdade total para cada cineasta fazer o que quisesse, desde que a ação do curta se passasse dentro (ou nos arredores) de uma sala de cinema. Os filmetes ganharam uma primeira exibição coletiva, durante a edição 2007 de Cannes, e depois foram desmembrados dentro do mesmo festival, de forma que cada um dos filminhos virou aperitivo para um longa-metragem em competição naquele festival. Eles foram reunidos novamente para uma edição especial em DVD. O disco se ressente apenas de uma ausência – o curta dos irmãos Joel e Ethan Coen ficou de fora por problemas de direitos autorais. Via de regra, é possível encontrar um elemento em comum nos 33 filmetes que integram o projeto. Quase todos os filmes demonstram nostalgia, em maior ou menor grau, pela experiência de ir ao cinema – e alguns dos autores não se acanham em lamentar que esta experiência pareça fadada a um desaparecimento gradual, à medida que as novas tecnologias de exibição ganham espaço pelo mundo afora. Alguns dos melhores: Abbas Kiarostami mostra rostos de mulheres reagindo emocionalmente a uma exibição do “Romeu e Julieta” de Zefirelli. Takeshi Kitano acompanha um homem que tenta ver um filme, sempre interrompido por problemas de projeção. Iñárritu ilustra como um simples filme pode interferir na vida conjugal de um casal. No quesito homenagens a grandes mestres, Fellini ganha duas lindas homenagens (Andrei Konchalovski, com uma lanterninha emotiva que chora a cada sessão de “Oito e Meio”, e Theo Angelepoulos, que mostra o encontro de Jeanne Moreau com o fantasma de Marcelo Mastroianni), e Robert Bresson, outras duas (uma bela, dos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, grandes discípulos do mestre francês; outra OK, de Hoa Hsiao Hsien). O pior curta de todos não se encaixa neste quesito, com o egípcio Youssef Chahine fazendo uma auto-homenagem constrangedora. A mulher-barata de Jane Campion e a estridência da historinha latina de Cimino também desapontam, mas a rigor nada se compara em ruindade ao filme de Chahine. Alguns dos curtas mais iconoclastas também podem ser incluídos, ainda que de modo oblíquo, na categoria “nostalgia do cinema”. É o caso do filme de Cronenberg, uma tomada sem cortes do último judeu do planeta, cometendo suicídio no banheiro do último cinema da Terra. Ou da piada bem bolada de Roman Polanski, em que um casal assistindo ao clássico pornô soft “Emanuelle” fica incomodado pelos gemidos insistentes de um homem sentado logo atrás. O rei da categoria é o ótimo filme do italiano Nanni Moretti, que senta nas poltronas de um cinema e relembra momentos inusitados de sua vida de cinéfilo, como quando vibrou com “Rocky Balboa” ou tentou explicar ao filho de sete anos que os filmes dele não são parecidos com “Matrix”. Muito legal. Agora, é provável que nenhum curta do projeto cause mais impacto do que o filme de Lars Von Trier. O sempre polêmico autor dinamarquês fez, na ficção, algo que todo amante do cinema (ou da experiência de ir ao cinema para assistir a um filme, e não para ficar de bate-papo ou com celular ligado) sempre quis fazer com espectadores mal-educados. Curioso que o personagem pentelho do filminho dele seja um crítico de cinema, idéia já explorada por M. Night Shyamalan no muito criticado longa-metragem “A Dama na Água”. De qualquer forma, o curta de Von Trier poderia muito bem passar a ser exibido como vinheta obrigatória antes de sessões de cinema aqui no Brasil. Quem sabe a platéia se tornaria um pouco mais educada.
Joel e Ethan Coen mostram o que acontece quando se leva o mundo da espionagem a sério demais Marcelo Hessel/Omelete O lacônico agradecimento dos irmãos Joel e Ethan Coen no Oscar 2008, depois de levarem os troféus de melhor roteiro, direção e filme por Onde os Fracos não Têm Vez, é a síntese da postura dos dois diante de Hollywood. Uma postura irônica - e que percorre por inteiro Queime Depois de Ler (Burn After Reading, 2008), a nova comédia dos irmãos. Desta vez, os Coen satirizam os filmes de espionagem. Seguimos um ex-agente da CIA, Osbourne Cox (John Malkovich), que pediu demissão quando a agência lhe ofereceu um posto burocrático. Cox sente falta da ação dos tempos da Guerra Fria, diz ele. Pois ação não falta quando o livro de memórias que Cox está escrevendo cai nas mãos de dois palermas, instrutores de academia, Linda (Frances McDormand) e Chad (Brad Pitt) - que querem lucrar com o material. À trama de chantagem somam-se a esposa de Cox, Katie (Tilda Swinton), que o trai com um segurança do governo, Harry Pfarrer (George Clooney), que marca um encontro pela Internet com Linda, que antes de mais nada está querendo fazer umas plásticas para ficar mais jovem, e por aí vai... É a trama circular de um Grande Lebowski pontuada pelo tom farsesco e sarcástico, banalizando a violência, de um Fargo. Desde os cartazes à la Saul Bass, passando pela trilha sonora "tensa", até o estilo de filmagem que evoca os Bournes da vida (câmera simulando mira telescópica, ponto de vista de satélite, etc.), tudo em que Queime Depois de Ler funciona em função da sátira ao gênero. Curiosamente, os Coen aliam a sátira à homenagem: é a segunda vez, depois de E aí, meu Irmão, Cadê Você?, que George Clooney aparece em um filme dos irmãos pegando um cineminha. O melhor do filme, porém, não é a sátira ao visual das histórias de espionagem, mas à empafia do gênero. Queime Depois de Ler mostra que a vida dos espiões é tão ridícula quanto a nossa: até mesmo um 007 tem cheques sem fundo devolvidos, e quando Cox recebe uma ligação em seu telefone secreto no porão, é engano. Mais do que isso: pode haver mais intriga, segredos e traições em uma relação de marido e mulher do que numa relação EUA - Rússia. A chave é não se levar a sério demais. Foi essa a mensagem antipsicologizante que os Coen passaram no Oscar e essa é a mensagem que está implícita até no título do filme. Assista, divirta-se, ponto.
Martin Scorsese mostra o quarteto inglês em cima do palco e nos bastidores Eduardo Viveiros/Omelete Quando Jean-Luc Godard gravou seu Sympathy For the Devil, em 1968, os Rolling Stones não tinham nem dez anos de estrada. A presença do diretor francês em estúdio, registrando a gravação da música que deu título ao filme, era quase coincidência. A banda entrou nos planos de última hora, e Godard estava mais interessado em analisar a contracultura da época. Ninguém diria que aqueles ingleses de calça apertada teriam mais dez anos de vida útil no palco - muito menos eles. Hoje, quarenta anos depois, os Stones ainda estão no topo da curva. Vovôs roqueiros, têm mais energia do que a soma dos músicos que bebem da sua herança. E conseguiram transformar uma banda de rock em empresa multinacional, com uma das marcas mais eficientes do globo, movimentando milhões de dólares a cada turnê. O poder de Mick Jagger e companhia não é brincadeira. E é isso que parece ter fascinado Martin Scorsese, em mais uma de suas recentes incursões musicais. Em 2003, o cineasta produziu uma ótima série de documentários sobre as raízes do blues. Dois anos depois, conseguiu jogar um holofote sobre o recluso Bob Dylan em No Direction Home. E agora, fingindo que não era nada demais, resolveu captar o quarteto inglês no palco. The Rolling Stones - Shine a Light seria só mais um ordinário registro de banda ao vivo, se os envolvidos não fossem quem são. Os Stones entram com a excelência musical e o joie de vivre de quem não tem mais nada a provar. E o cineasta soma com seu amor pelas canções da banda (que freqüentemente aparecem nas trilhas sonoras de seus filmes) e sua boa mão de documentarista, atento a pequenos detalhes - acredite, você nunca percebeu a importância dos dentes de Mick Jagger para a música. O filme/show ganha muito por não ter sido gravado em grandes locações, onde a banda está acostumada a se apresentar. No final de 2006, em meio à mega turnê A Bigger Bang, Scorsese conseguiu marcar duas apresentações no elegante Beacon Theater, em Nova York. Ali dentro, a superprodução tomou conta, com 20 câmeras espalhadas pelo lugar. Até a platéia de fãs da primeira fila foi escolhida a dedo, cada um recebendo cachê de 75 dólares pela presença. Mas tudo são detalhes, perto do repertório registrado. A escolha do setlist faz parte do momento cômico do filme. Jagger enrolou Scorsese até o último momento: o diretor só ficou sabendo quais músicas seriam tocadas quando a banda abria a introdução de "Jumpin' Jack Flash" (nesse ponto, já estava arrancando as sobrancelhas de nervoso). No final das contas, a lista deu preferência aos grandes clássicos dos Stones. As músicas mais recentes são de Tattoo You, álbum de 1981. Os convidados especiais incluem Christina Aguilera, surpreendentemente boa em "Live With Me" (mesmo que Keith Richards tenha declarado depois que não sabe até hoje quem é aquela mulher que invadiu o palco), Jack White (feliz feito criança, em "Loving Cup") e Buddy Guy (ponto alto, com "Champagne & Reefer", de Muddy Waters). Richards é um espetáculo à parte no meio da apresentação, assumindo o vocal blueseiro e chapado de "You Got the Silver" e "Connection". Claro que, por melhores que sejam a banda e as músicas, assistir a um show sentado no cinema tem um quê de chatice. Daí vem a esperteza de Scorsese, que incluiu imagens antigas da banda ao redor do mundo, a maior parte em entrevistas dos anos 60/70, para quebrar o ritmo e traçar um histórico curioso do fenômeno Rolling Stones. Entre os riffs de Keith Richards e Ronnie Wood, um sorriso mal-humorado de Charlie Watts para a câmera e as requebradas de Mick Jagger, Shine a Light é um registro superior da velha carreira dos britânicos. E ajuda a provar que esses quatro não são os homens mais importantes do mundo à toa. Só olhar para Bill Clinton (o ex-homem quase mais importante), salivando ao lado deles nos bastidores, para se ter certeza. Sorte nossa que eles devem durar, pelo menos, mais uns dez anos.
Documentário sobre o vocalista dos Paralamas do Sucesso vai do começo à luta pela vida Marcelo Forlani/Omelete Os anos 80 são malditos por aí. Os chamam de década perdida. As pessoas usavam roupas de cores "cheguei" como pink e verde limão. Os blazers de cor clara no estilo Miami Vice tinham invariavelmente a manga arregaçada e ombreiras. Os óculos espelhados também não ajudavam e o cabelo com permanente dava um toque final. Mas foi também nessa época que o rock brasileiro explodiu de verdade. Já tínhamos algumas pessoas se destacando, mas essa foi a primeira vez que uma "cena" roqueira se formou. O documentário Herbert de Perto (2006) esquece toda a breguice ali do começo para se focar principalmente na turma de Brasília que invadiu o Rio e depois o país. Mais especificamente, o holofote fica em cima de um cara, Herbert Vianna, guitarrista e vocalista dos Paralamas do Sucesso. O filme cava fundo e vai até a Paraíba, onde o piloto da FAB Hermano Vianna e sua esposa Tereza, tiveram dois filhos: Herbert e Hermano. O primeiro, certo dia, subiu no colo do Papai Noel e pediu para trocar a bicicleta por um violão de verdade. Em poucas aulas já estava ensinando novidades ao seu professor. É realmente impressionante a técnica de Herbert desde moleque, esmerilhando sua guitarra, buscando sons diferentes. A formação dos Paralamas também é parte importante e chama a atenção a clareza e sinceridade de D. Tereza, que disse ao seu filho depois de ouvir o primeiro demo: "Vocês não vão a lugar nenhum com esse baterista", disse ela sobre o Vital, aquele que passou a se sentir total com seu sonho de metal. Junta-se ao duo Herbert e Bi Ribeiro, o incauto João Barone, que só estava no lugar certo na hora certa. Com o perdão do clichê, dá para ver que ali cada momento era, sim, vivido como único. Uma hora eles estão abrindo para o Lulu Santos no Circo Voador achando que tinham chegado ao seu ápice. No instante seguinte estão em cima do gigantesco palco do primeiro Rock in Rio, dando bronca em quem havia jogado pedras no Eduardo Dusek e Kid Abelha no dia anterior. Em seguida, com a chegada dos anos Collor e seus sertanejos, eles começam a fazer música em espanhol e conquistam Argentina, Uruguai, Chile, etc. O filme é um primor de montagem, alternando imagens de arquivo com outras mais atuais. Mostra sem medo Herbert e seus amigos falando do acidente que vitimou sua esposa Lucy Needham Vianna e o deixou paraplégico. Tudo bem sincero e sem ser apelativo. E nem precisa. Basta Lucy aparecer na frente das câmeras pela primeira vez para as lágrimas furtivamente começarem a se alojar no canto do olho. E para encerrar vem a surpreendente recuperação, que deve muito à veia musical de Herbert. É impressionante como sua cabeça apagou apenas o que tinha de apagar, deixando intacta a musicalidade e a vontade de continuar vivo para criar seus filhos. Você, que como eu viveu essa época, vai lembrar de tudo com uma saudável nostalgia, fingir que aquela moda não existiu e sair do cinema cantando: "A vida não é filme e você não entendeu"...
Documentário feito para os fãs celebra um quarto de século de carreira Marcelo Hessel/Omelete Se você dissesse a um conhecedor de música pop que no Brasil um octeto roqueiro com cinco vocalistas conseguiu sobreviver quase dez anos e seis álbuns sem se dissolver, ele perguntaria como operou-se tal milagre. É o mistério que atravessa todo Titãs - A Vida Até Parece uma Festa (2008), e do qual, em alguns momentos, o documentário não consegue se esquivar. A princípio os figurinos combinam. Em 1984 estavam no auge da moda os ternos curtos que mostravam a meia branca e o sapato preto - código do ska two tone inglês, de cujos sons titânicos por excelência, no disco de estréia, são "Sonífera Ilha" e a versão aportuguesada de "The Harder They Come" (que no Acústico de 1997 já tem velocidade desacelerada de reggae). Do bicolor aos ternos coloridos da New Wave foi um passo. Mas fora das apresentações televisivas no Chacrinha, no Clube do Bolinha ou no Perdidos na Noite, todos os oito sempre no mesmo tom, frequentemente alinhados lado a lado, já dava pra notar os indivíduos: Tony Bellotto de jaqueta punk, Sérgio Brito fiel aos ternos, Arnaldo Antunes arriscando um penteado sem influência aparente... Na música, a banda ia da poesia concreta de "Cabeça Dinossauro" à crônica de "Família" ao gosto pelo choque de "Bichos Escrotos". Como sabemos - e seria omissão se o filme dirigido por Oscar Rodrigues Alves e pelo vocalista Branco Mello deixasse de mencionar - os Titãs não conseguiram preservar a unidade depois de 1992. O que há de mais interessante no documentário (que tem material filmado caseiramente por Mello desde 1986 e depois por Alves, profissionalmente, a partir de 2002) é a forma como os remanescentes absorvem o impacto. Porque, como diz Branco Mello num momento, eles são uma família: brigam mas permanecem unidos. O filme trata, literalmente, a vida como uma grande turnê e a estrada como festa. Celebra os Titãs como uma instituição e deixa-se conduzir por sua música sem narrativa em off (a explicação do caso da prisão por porte de heroína, por exemplo, se resume ao manifesto de "Polícia"). É um documentário para os fãs, acima de tudo. E quando a câmera capta um ruído, como a cara amarrada de Nando Reis na votação que elegerá a lista de faixas de A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana, o momento emerge como raridade. É compreensível que o documentário ganhe instantes assim com a chegada de Alves; quando filmava o atrito entre Charles Gavin e o produtor Liminha numa gravação, por exemplo, a câmera de Branco Mello tentava "escapar" do close-up do baterista, meio com vergonha de constranger seus pares. Então não espere, evidentemente, um Some Kind of Monster, o documentário-terapia do Metallica. No fundo o Titãs talvez nem tenha tantas arestas para aparar. Arnaldo Antunes quase cai da cadeira de animação ao se reunir com a banda... Há um momento que talvez seja a resposta para o mistério da longevidade, o videoclipe de "Cabeça Dinossauro" na Chapada dos Guimarães. Ali, enfileirados, cada um dos oito aguarda a sua vez de se expor para a câmera, e quando juntos parecem um só. Há um senso de unidade que vem da performance, e o segredo do sucesso do octeto talvez esteja justamente nessa aglutinação.
Cineasta sul-coreano revigora fórmula do filme de monstro com humor e drama familiar Por: Rodrigo Carreiro Os grandes estúdios de Hollywood sempre apostaram nos filmes de monstros como um dos mais lucrativos filões do mercado cinematográfico. A Universal, por exemplo, se consolidou como uma das maiores firmas distribuidoras ao bancar simultaneamente, ainda na década de 1930, diversas franquias do estilo (Lobisomem, Frankenstein, Múmia). Diversas gerações já passaram pelas salas escuras desde então, mas o gênero jamais perdeu a popularidade. Ao tornar-se o filme de maior bilheteria no país de origem em todos os tempos, “O Hospedeiro” (Gwoemul, Coréia do Sul, 2006) provou isso mais uma vez. De quebra, o filme ainda foi aclamado como renovador do filão, que há muitos anos apenas repetia fórmulas, sem apresentar novidades. Na verdade, o jovem diretor Joon-Ho Bong não precisou pesquisar muito para fazer uma pequena e despretensiosa pérola do horror oriental. Bastou recorrer a “Tubarão” (1975), o primeiro grande sucesso de Steven Spielberg, e verdadeira aula de como extrair drama genuíno das situações potencialmente inverossímeis. O cineasta ainda diz que tentou, como em “Sinais” (2002), de M. Night Shyamalan, manter o foco do filme não sobre o monstro em si, mas sobre a forma como o aparecimento dele desequilibra a estabilidade de uma família, que precisa destruir a ameaça para poder continuar unida. Em última instância, portanto, Bong quis fazer um filme familiar que fizesse a platéia sentir medo, rir, chorar e se identificar com os heróis. E conseguiu. Curiosamente, com menos de 10 minutos de projeção, o cineasta quebra uma das regras de ouro do gênero: logo na terceira cena do filme, e em plena luz do dia, ele mostra a cara do monstro. As duas cenas anteriores são prólogos que funcionam como explicação – em clima de sátira política – para a origem do mutante. Na primeira, que se passa em 1999, um militar norte-americano ordena a um funcionário que despeje dejetos químicos nos esgotos que desembocam no rio Han. No ano seguinte, pescadores esbarram num filhote mutante de peixe. Aí o filme dá um salto de seis anos para, na cena seguinte, exibir o primeiro ataque do monstro, em uma praia do rio. É uma seqüência longa, claramente decalcada de “Tubarão”, que equilibra tensão e humor em doses iguais, e apresenta os protagonistas – os membros de uma família disfuncional que possuem uma lanchonete no local. A partir daí, o enredo se desenvolve a partir de uma premissa muito simples: o monstro rapta a caçula da família (Du-Na Bae), e os demais membros precisam se unir para resgatá-la. Nada muito original. É o modo como o cineasta coreano trata a história, a partir deste ponto, que transforma “O Hospedeiro” em um excelente filme. Para começar, Bong não tem medo de fazer um coquetel alucinado de gêneros. Ele vai do suspense de congelar os ossos (as cenas que mostram a criança raptada, dentro do covil do monstro, nos canos de esgoto da cidade) a trechos de comédia pastelão (quase todas as aparições do pai da criança), passando por cenas de angústia absoluta (a lobotomia). Impressiona a naturalidade com que essas cenas são costuradas, em um filme coeso e criativo. O mais importante é que, com tanta coisa acontecendo na tela, o cineasta jamais esquece que o cerne do filme, o seu centro emocional, está na questão familiar. O pai, o avô e os dois tios da menina gritam, se desentendem, discutem até chegar às raias da pancadaria, mas tudo desemboca numa conclusão brilhante, que funciona em dois níveis complementares. Cada membro do quarteto precisa passar adiante um pedaço da informação, para que o resgate possa ser um sucesso, e isto não apenas dá à história um andamento eletrizante, mas também encarna muito bem o tema da união familiar. Afinal, sem confiança irrestrita de cada personagem nos demais, não seria possível que o filme desembocasse num confronto épico entre o monstro e os heróis. E se você acha que sabe como tudo vai terminar, espere até o fim. Vale ressaltar, ainda, que o filme confia sem medo nas imagens computadorizadas (CGI) da criatura, apresentando-a em diversas cenas à luz do dia, ao contrário do que ocorre com muitos filmes hollywoodianos de orçamento mais abastado (“Demolidor”, “Motoqueiro Fantasma”). A qualidade do CGI é excelente, e o design do monstro, desenhado pela Weta (a empresa neozelandesa de Peter Jackson, responsável pelos efeitos de “O Senhor dos Anéis”), homenageia duas das mais respeitáveis franquias de monstros, Alien e Godzilla, sem deixar de ter uma aparência única – lembra um bagre gigante que se movimenta como um chimpanzé. Ao mesmo tempo engraçado e assustador. Como o filme. http://www.cinereporter.com.br/dvd/hospedeiro-o/
Estréia da atriz Sarah Polley na direção surpreende pela maturidade com que encara o inusitado tema da vida na velhice Por: Rodrigo Carreiro “Longe Dela” (Away From Her, Canadá, 2006) está muito, muito distante do tipo de filme que se esperaria da estréia na direção de uma atriz que contava apenas 26 anos de idade quando começou a delinear o projeto. E isso é o melhor elogio que o longa-metragem independente, filmado no Canadá sem o apoio de nenhum estúdio, poderia receber. Trata-se, afinal, de uma narrativa suave, madura e delicada sobre as duras decisões que precisam ser tomadas por um casal de meia-idade que se prepara para viver uma velhice tranqüila, num paraíso bucólico e gelado do interior canadense, quando é perturbado pelo súbito e dramático surgimento de uma das doenças mais traiçoeiras que pode atingir uma pessoa: o Mal de Alzheimer. Narrativas cinematográficas sobre jovens dirigidas por pessoas experientes são relativamente comuns. Não é tão difícil, para um cineasta veterano, dramatizar eventos vividos por uma pessoa de pouca idade. O contrário, porém, é bem mais raro. Diretores estreantes, ainda por cima tão novos quanto Sarah Polley, costumam ter dificuldade para dar estofo e conteúdo a histórias íntimas sobre gente velha. Afinal de contas, eles não têm experiência pessoal com os temas que vivem nas entrelinhas do cotidiano de sexagenários, como os personagens de “Longe Dela” – temas como a proximidade da morte, o medo de que as pessoas queridas se vão antes delas, o ajuste de contas com traumas do passado. Tudo isso faz a estréia de Sarah Polley na direção uma conquista pessoal ainda mais impressionante. O filme é a adaptação para o cinema de um dos contos favoritos da atriz. Curiosamente, porém, não era o projeto que ela desejava comandar, como primeira incursão na direção de longas. Enquanto se preparava para a tarefa, dirigindo curtas, Polley escreveu cuidadosamente um roteiro original sobre os demônios pessoais de uma atriz-mirim de 12 anos. A dificuldade de conseguir financiamento para o projeto a fez mudar de rumo e se decidir por levar a cabo o que se tornaria “Longe Dela”. Em poucos meses, ela escreveu um roteiro para o projeto e convidou a veterana Julie Christie, que conhecera nos sets de filmagens de “A Vida Secreta das Palavras” (2005), para interpretar a protagonista. A presença da diva indiana (de origem inglesa) tornou o projeto possível. E Christie, com uma interpretação meticulosa, dá nuances de humanidade a um drama raro, que se debruça sobre um universo pouquíssimo visitado por filmes, que é a vida na velhice. Embora Fiona (Christie) seja o pivô da história, ela é contada do ponto de vista de Grant (Gordon Pinsent). Eles formam um casal de sexagenários que, aposentados, se preparam para viver uma velhice confortável, numa casa ampla e afastada dos grandes centros, quando são surpreendidos com a chegada da doença. Quando os lapsos de memória de Fiona se tornam mais freqüentes, a própria mulher decide ir viver numa clínica geriátrica, especializada em casos como o dela. Fiona se mantém irredutível, apesar dos veementes protestos do marido. A partir da internação, o filme se dedica a acompanhar os esforços de Grant para se acostumar à nova e solitária rotina, enquanto a relação dele com a mulher evolui de maneira completamente inusitada. Como quase todo filme dirigido por atores, “Longe Dela” deve boa parte dos méritos à atuação extraordinária e uniforme do elenco. Julie Christie se destaca por dar vida com incrível naturalidade a uma mulher de personalidade forte, que a doença vai gradualmente modificando. As nuances de interpretação são sutis e inteligentes – observe, por exemplo, como o olhar de Fiona é completamente diferente, depois que o casal cumpre os 30 dias regulamentares de afastamento que a clínica exige, após a internação. Já Gordon Pinsent, muito menos conhecido do que a colega, também está ótimo. Sua expressão de dor e solidão é comovente, mesmo nos momentos em que a mulher ainda não foi para a clínica. Ele remói o peso de erros do passado e não consegue evitar o sentimento de culpa pelo que está ocorrendo, embora saiba que tudo não passa de uma cruel capricho do destino. Demonstrando segurança e maturidade surpreendentes para uma estréia, especialmente sendo tão jovem, Sarah Polley conduz o filme com muita sensibilidade. Diante de um tema difícil, ela jamais cai na tentação de chafurdar no melodrama. Usa diálogos econômicos, criando uma narrativa lenta e contemplativa, pontuada por momentos de silêncio, que ajudam o espectador a sentir no íntimo a mesma tristeza de Gordon, o narrador. Brinca com a cronologia dos eventos de forma nada gratuita, de modo a criar um pequeno momento de surpresa genuína no terceiro ato. E recusa o uso de orquestração na trilha sonora, o que poderia aproximar perigosamente o tom do filme de um dramalhão. Polley prefere usar canções acústicas do conterrâneo Neil Young para transmitir a atmosfera etérea e melancólica do drama do protagonista. O resultado é um belo filme. http://www.cinereporter.com.br/dvd/longe-dela/
O diretor austríaco Michael Haneke tem filmado ultimamente na França e usado em seu elenco os profissionais do país. Seus filmes costumam ter como personagens a classe média atingida por algum horror. Ele é um mestre no suspense e na violência abafada, surda. Grande observador do comportamento humano em situações de crises extremas e limítrofes. Diferente dos suspenses americanos, sua tensão é provocada pelo dia-a-dia comum em que as pessoas vivem em situações cotidianas. Em Caché (2005), a trama é sobre uma família que aparentemente não tem nenhum problema emocional ou financeiro. Georges (Daniel Auteil) e sua esposa (Juliette Binoche) começam a receber fitas de vídeo com imagens de sua casa e desenhos sinistros de alguém misterioso que parece conhecê-los muito bem. Devido ao episódio, o marido reencontra um personagem de sua infância: um argelino, que se tornou pai e vive em um lugar humilde. Este encontro irá resultar em uma tragédia que mudará para sempre sua vida e a de sua família. O filme começa de uma forma inovadora. Os créditos iniciais são apresentados de forma contínua como se fossem digitados diretamente na tela. Há uma imagem ao fundo, que o público logo descobre ser o lar do casal. O interessante é que, em vários momentos da produção, não se sabe ao certo se a cena apresentada é do filme ou da filmagem feita pela figura misteriosa. Esse tipo de informação se mistura com flashes do passado de George e lembranças antigas. O espectador fica na dúvida se a imagem é parte da narrativa, como mais um personagem, ou foi colocada para compor a história. Haneke, um cineasta autoral, apresenta os elementos que sempre permearam sua obra: o inevitável efeito que o passado faz no presente, a assombração, a culpa pessoal ou coletiva, a paranóia criada por uma manifestação doméstica ou externa e os indivíduos que relutam em aceitar a responsabilidade por sua própria conduta ou atos. Esses aspectos são relacionados ao medo e à culpa que qualquer ser humano possa vir a desenvolver durante a sua existência. Ele tem uma visão sombria, ambígua e cínica do mundo e isso é refletido em seus filmes. Um outro lado abordado pelo diretor é a relação entre o povo argelino e o francês. Eles têm uma história tensa, pois a Argélia foi colônia da França. A independência aconteceu há apenas 40 anos. Podemos notar a mesma relação entre os personagens, como também a relação entre o primeiro e terceiro mundo. O filme é, na verdade, uma alegoria política das relações inter-raciais. O mais desenvolvido não se preocupa com o mais necessitado. Só vê e acredita nas suas próprias necessidades. Durante o desenvolvimento do roteiro, além dos aspectos externos que trazem desequilíbrio à família, os próprios envolvidos criam situações que desestabilizam suas vidas. A desconfiança é plantada no seio familiar, em todas as relações que há nele. Isso faz o público não ter pena dos indivíduos, pois na verdade ninguém é mostrado como santo. Ao que parece, a perfeita harmonia existente na família é apenas superficial, bastando um elemento catalisador para jogar tudo por terra. Caché tem vários sentidos, alguns literais e outros metafísicos. A câmera pode significar uma invasão de privacidade na vida de George, mas ao mesmo tempo pode ser um elemento que irá trazer a luz ao seu passado para sua esposa e em sua própria consciência. Uma espécie de acerto de contas, possibilitando-o a enfrentar seus próprios demônios. Tanto que a última tomada do filme é tão ambígua quanto a última cena em que George aparece. O público que precisa de um final certinho pode ficar revoltado, mas isso é o que menos importa nos filmes de Haneke. Seu principal objetivo é apontar os movimentos emocionais e não resolvê-los. http://www.omelete.com.br/cine/100002809/Cache.aspx
Fenômeno de marketing ou golpe de sorte, não importa: o filme ainda provoca incômodo Por: Rodrigo Carreiro O mundo é contraditório. Para assistir a um filme como “A Bruxa de Blair” (Blair Witch Project, EUA, 2003) e ficar aterrorizado de verdade, seria preciso nunca ter ouvido falar nele. Por outro lado, se a badalação em torno dessa película independente não tivesse sido tão grande, seria impossível ver uma fita dessas no Brasil, um país onde os filmes de um cineasta do naipe de Steven Spielberg esperam dois meses para chegar às telas. É louvável que um filme como Blair tenha quebrado a barreira dos US$ 140 milhões de bilheteria num país (Estados Unidos) onde o grau de sofisticação técnica do cinema beira o inimaginável. Também é inegável que grande parte desse fenômeno é culpa do marketing genial, que usou um site inteligente na Internet para gerar uma propaganda boca-a-boca de proporções inéditas em torno do filme. Como cinema, “A Bruxa de Blair” traz de volta a simplicidade das primeiras décadas do cinema. O filme foi feito por cinco estudantes da Universidade de Orlando (EUA) e custou míseros US$ 40 mil. Filmado em películas Super 8 e 16 mm (material amador usado por estudantes), o documentário quebrou recordes históricos. Arrecadou US$ 5 milhões em apenas 27 salas, depois de uma estréia arrasadora, e fez mais de US$ 240 milhões na carreira global, uma cifra incrível para um filme tão barato. E, afinal, de que trata o filme? A história é simples: três jovens estudantes de cinema que viajavam ao município de Burkittsville, no estado de Maryland (EUA), para filmar um documentário sobre uma lenda local – a existência de uma bruxa responsável por desaparecimentos e assassinatos ocorridos ao redor do bosque local, nos últimos 200 anos – somem depois de entrar na tal floresta. Um ano depois, o material filmado por eles é encontrado. Os 87 minutos do filme seriam, na verdade, uma fita editada pela polícia local a partir das fitas deixadas pelos estudantes. A grande sacada dos criadores do longa (o cubano Eduardo Sanchez e o norte-americano Daniel Myrick) foi criar um site e divulgar na Internet que toda a história era real. Sem publicidade, grande parte das pessoas que foram assistir ao longa-metragem no Festival de Sundance (EUA), em janeiro de 1999, pensavam que o filme era um documentário. A estratégia provocou pânico na platéia que, atordoada pelas imagens e pela falta de informações sobre a produção, passou a acreditar que o documentário era verídico e que os atores estavam mortos de verdade. O boato se espalhou de forma tão rápida que até mesmo o maior banco de dados sobre cinema do mundo, o Internet Movie Database, fez constar a data de 26 de outubro de 1994 (dia do suposto desaparecimento dos estudantes) como dia da morte dos atores Heather Donahue, Michael Williams e Joshua Leonard, que protagonizam o filme. O mico histórico foi corrigido dias depois, claro. Mas isso bastou para criar uma lenda descomunal em torno da película. Gerou, também, a noção de que o filme era o produto mais aterrorizante já vistos numa sala de cinema. Visto anos depois da estréia, “A Bruxa de Blair” não chega nem perto disso. Afinal, o espectador sabe que está vendo uma farsa bem montada. De qualquer forma, “Blair” é cinema criativo. Só que, para compreendê-lo e saber curti-lo, exige que a platéia reaprenda a usar os sentidos. Tem ritmo lento, imagens tremidas o tempo inteiro, longos trechos com a tela negra (só dá para ouvir o som). Não tem sangue, explosões, tiros. E o final permite várias interpretações. Para o espectador, a sensação de desconforto é crescente. Esse é um filme que ganha muito quando visto em tela pequena, na TV. Além de possuir imagens quase quadradas, na proporção de uma TV normal (4:3), o longa pode provocar náuseas quando visto na sala escura. Às vezes, o cinema inteiro parece rodar junto com a câmera mal iluminada de Heather Donahue, a garota que lidera o trio de estudantes. Fazer filme sem roteiro – os diálogos são 100% improvisados – significa talento. A direção dos estreantes Eduardo Sánchez e Daniel Myrick, incomum, acerta o alvo, provocando medo genuíno nos atores. A montagem das imagens é um espetáculo de criatividade. O pavor dos três estudantes aumenta no mesmo pulso do pavor da platéia. Para conseguir o resultado, os cineastas largou o trio no bosque do Seneca Creek State Park, um pântano cheio de rochas e pinheiros. Com eles, apenas um equipamento de Global Position System (GPS), de localização por satélite, além das câmeras. Os três tinham que passar oito dias acampando no pântano, enquanto eram seguidos e submetidos a sustos pelo pessoal da Haxan Films, a produtora responsável. A rotina era quase militar. Os atores caminhavam cerca de nove quilômetros por dia para chegar a pontos determinados pela equipe através do GPS. Lá, achavam apenas filmes e baterias para as câmeras e comida. Cada um recebia um bilhete dando instruções individuais, do tipo “deixe a câmera ligada quando for dormir”. Ninguém poderia mostrar os bilhetes aos outros. O material obtido registrava sustos reais, já que os atores, com fome, sono e cansaço, não sabiam o que estava acontecendo. Esse realismo gera bom fruto. Sem sangue, sem imagens fortes, o filme aposta na tensão crescente entre os atores, que, sem dormir e sem comer direito, começam a brigar de verdade. Isso tudo culmina com um monólogo de Heather Donahue, que, de olho esbugalhado na câmera, provoca um dos momentos mais apavorantes dos últimos anos. Filme de terror? Pode crer! http://www.cinereporter.com.br/dvd/bruxa-de-blair-a/
Bennett Miller evita a biografia convencional e dramatiza a controversa e complexa amizade entre um artista e um assassino Por: Rodrigo Carreiro Romancista de talento, repórter premiado e roteirista celebrado em Hollywood, Truman Capote (1928-1984) é um personagem que renderia uma boa cinebiografia convencional. Egocêntrico, de humor politicamente incorreto e abertamente gay, ele tinha uma personalidade excêntrica que marcou época nos círculos intelectuais norte-americanos. “Capote” (EUA/Canadá, 2005), no entanto, não é uma cinebiografia, e muito menos um filme convencional. Desde já, o trabalho do novato Bennett Miller é um dos trabalhos mais brilhantes e controversos que ilustram o tortuoso processo de criação de um artista, enfocando inclusive a maneira como a arte afeta a vida – tanto quanto a vida afeta a arte – de quem cria. “Capote” cobre seis anos da vida do personagem-título, de 1959 a 1965. Durante esse período, Truman escreveu a obra-prima “A Sangue Frio”, livro-reportagem sobre uma chacina cometida por dois rapazes na pequena cidade de Holcomb (Kansas). Ele viajou para o lugar decidido a escrever um artigo, para a revista New Yorker, sobre o impacto do crime bárbaro numa comunidade rural. Tudo mudou depois que conheceu Perry Smith (Clifton Collins Jr), um dos assassinos, preso no mês seguinte. Entre os dois, repórter e criminoso, nasceu uma relação complexa e controversa de empatia, difícil de definir em palavras. É essa amizade, erguida sobre um muro de silêncio e dor, bem como a interferência dela na vida e na obra do artista, que o filme radiografa com precisão cortante. Em uma cena-chave do filme, durante uma conversa com o editor William Shawn (Bob Balaban), Capote tenta explicar o fascínio que Smith – assassino odiado por todo o país pelo ato vil de abater a tiros de escopeta um casal e duas crianças – exerce sobre ele. “Sinto como se tivéssemos crescido na mesma casa; só que eu saí pela porta da frente e ele, pela dos fundos”, enuncia o escritor. É uma metáfora perfeita, porque define a realidade assustadora que Truman experimentou ao se deparar com Smith. O encontro com o criminoso reavivou demônios adormecidos dentro do escritor. Em Perry Smith, Truman Capote viu um espelho. Ficou frente a frente com uma faceta selvagem de si mesmo. E não gostou do que viu. Capote, o homem, é objeto de uma interpretação fascinante de Philip Seymour Hoffman. Ator versátil e reconhecido pela indústria do cinema como profissional irretocável, Hoffman incorpora à perfeição todos os tiques do excêntrico escritor: a voz efeminada, os gestos afetados, o ego monstruoso, o humor cruel. Em uma das muitas grandes cenas que protagoniza, ele encontra pela primeira vez o policial responsável pela investigação (Chris Cooper, excelente), e tenta intimidá-lo, citando de forma arrogante a marca sofisticada da echarpe que está usando e o nome da revista intelectual para a qual escreve. Sutilmente, chama-o de “caipira”. Mas só consegue dobrá-lo depois de perceber que a mulher deslumbrada do homem adora ouvir histórias dos bastidores de Hollywood. A performance de Hoffman vai além da pura imitação do verdadeiro Capote. Quando o escritor começa a perceber a natureza da afeição que sente por Perry Smith, por exemplo, vira um poço de angústia, desespero e tensão, cheio de gestos contraditórios; às vezes é um homem solidário e emocional, noutras implacavelmente duro e frio. Entra em cena um conflito interno: Capote, o homem, nutre compaixão por aquele assassino e quer salvá-lo da execução, enquanto Capote, o escritor, deseja vê-lo morto o quanto antes, para que possa terminar o livro em paz. Hoffman comunica esse conflito ao espectador não com palavras, mas com nuances sutis de olhares e expressões faciais. O trabalho do restante dos atores, incluindo o citado Chris Cooper e a ótima Catherine Keener (no papel da amiga mais íntima de Capote), fornece a sustentação para que Hoffman brilhe. O outro destaque do elenco é Clifton Collins Jr, que compõe Smith como um homem taciturno e de vocabulário surpreendentemente refinado para um criminoso, alguém com grande habilidade para desenhar e inegável pendor artístico, mas com o olhar duro de um homem perturbado. O roteiro de Dan Futterman, amigo de infância do diretor, acerta em cheio ao mostrar a degradação psicológica de Truman Capote, apostando firmemente no poder de sugestão das imagens. Futterman sabe que as palavras não dão conta da relação especial que existe entre artista e assassino; a natureza dessa amizade está além delas, e portanto só pode ser capturada em imagens. É assim que filme realça a personalidade complexa de Truman, um homem de talento imenso, quase tão grande quanto seu ego (“como você sabe que este vai ser o maior livro da década, se não escreveu uma só palavra?”, pergunta-lhe o editor), mas de índole desagradável, mesquinha e amoral. Em 1959, quando a trama começa, Capote é um homem alegremente insolente, que não hesita em usar qualquer um – amigos, parentes e chefes incluídos – como meros degraus para alcançar seus objetivos pessoais. No final, ele ainda mantém o humor corrosivo e traços da insolência, mas não há mais alegria. Ali está um artista derrotado pela sua obra. O filme ilustra isso de maneira soberba. Em nenhum momento, por exemplo, é mencionada a palavra “alcoolismo”, mas a freqüência com que vemos as taças de Martini nas mãos de Capote, no decorrer do filme, aumenta assustadoramente rumo ao final da obra. O alcoolismo acabaria por matá-lo, em 1984. Bennett Miller não precisa dizer isso. As imagens valem mais do que mil palavras. De qualquer modo, “Capote” vai muito além do mero registro do processo criativo de um autor (algo que, por sinal, o hermético “Crime Delicado”, de Beto Brant, faz bem). O longa-metragem desenha um complexo e controverso estudo de personagem, focado sobre o processo irreversível de autodestruição de um indivíduo que tem tudo – fama, fortuna e talento – menos a habilidade de conviver com seus demônios pessoais. O encontro com Perry Smith perturba Capote porque ele perde a capacidade de controlar seus impulsos vitais mais profundos. E o pior é que ele sabe disso; sabe que o encontro o marcará pelo resto da vida. A célebre frase de Nietzsche cabe como uma luva na situação dramática desenvolvida pelo belo filme de Bennett Miller: “Quando você olha para o abismo, o abismo olha de volta para você”. Não são muitos os trabalhos capazes de dramatizar uma situação tão controversa e polêmica – a amizade entre um assassino e uma celebridade –, e isso só agrega pontos positivos a “Capote”. O que temos aqui é um dos filmes mais corajosos da safra 2005. Considerando que obras polêmicas como “Brokeback Mountain”, “Boa Noite e Boa Sorte” e “Syriana” foram lançados no mesmo ano, isso não é pouco. http://www.cinereporter.com.br/dvd/capote/
História é convencional, mas não subestima a inteligência do público, possui bons atores, subtexto político, humor e ação realista Por: Rodrigo Carreiro As adaptações cinematográficas de revistas em quadrinhos são, neste princípio de século XXI, a galinha dos ovos de ouro da indústria do entretenimento nos Estados Unidos. Enquanto o cinema sofre com a concorrência de games cada vez mais realistas e com a pirataria, fatores que roubam o público das salas de projeção, heróis e vilões oriundos dos gibis continuam mexendo com as emoções de milhões de fãs. Não foi por outro motivo que a Marvel, editora que detém os direitos da maior galeria de personagens do gênero, decidiu dar um ambicioso passo adiante e se lançar como estúdio de cinema. A decisão significou arcar sozinha com os custos milionários dos longas-metragens com peças do seu elenco envolvidas, mas por outro lado possibilitou à empresa colher fatias bem mais largas dos lucros extraordinários amealhados por estas produções. “Homem de Ferro” (Iron Man, EUA, 2008) marca a entrada triunfal da Marvel no território até então dominado por Sony (Homem-Aranha, Motoqueiro Fantasma), Fox (Quarteto Fantástico, X-Men) e Universal (Hulk) – desta vez, a Paramount cuida da distribuição, mas só isso. A escolha do personagem para o passo adiante da empresa era uma escolha lógica. Apesar de menos conhecido pelo público leigo, o gigante de armadura vermelha e amarela, criado em 1963, possui séquito fiel de admiradores e se encaixa à perfeição no perfil dos heróis de ação mais amados da atualidade. O empresário Tony Stark é um homem imperfeito, que equilibra qualidades e defeitos. É gênio da tecnologia, patriota e honesto, mas leva um estilo de vida excêntrico e irresponsável, regado a bebidas, mulheres e declarações tão francas quanto polêmicas. Seguidores de filmes de ação com super-heróis mascarados vão notar, sem dúvida, a semelhança com o Batman, herói-ícone da DC Comics, maior rival da Marvel. Esta semelhança não é mera coincidência. Criado por Stan Lee, Tony Stark é mesmo uma variação do Homem-Morcego de Bob Kane. Também nasceu em berço de ouro e parece, aos olhos do público, um playboy perdulário, embora seja muito mais altruísta do que se pensa. Além disso, a franquia do Batman (rejuvenescida por Christopher Nolan em 2005, após quatro longas-metragens anteriores) foi influência decisiva no Homem de Ferro moldado pelo diretor Jon Favreau, com a ajuda de quatro roteiristas experientes. O realismo de “Batman Begins” reaparece com uma roupagem mais bem-humorada e luminosa. Aqui, o herói não parece imortal e invencível. Ele é desajeitado no treinamento para operar o traje especial e fica perto da morte várias vezes. O tratamento dado à tecnologia também finca um pé firme na realidade, sem os disparates inconseqüentes de bobagens como “Quarteto Fantástico”. As armas de guerra e traquitanas tecnológicas criadas por Stark poderiam, tranqüilamente, existir no lado de cá da tela. A outra influência importante na criação de “Homem de Ferro” vem da mais bem-sucedida cria da Marvel nos cinemas, o Homem-Aranha. O primeiro filme da franquia do aracnídeo, criado por Sam Raimi em 2002, não é um paradigma do gênero por acaso. Depois dele, virtualmente todos os filmes com personagens de quadrinhos (inclusive o já citado “Batman Begins”) se sentiram na obrigação de investir, com minúcias, no nascimento do herói, decicando-se com afinco à composição de um personagem consistente. Não há dúvidas de que “Homem de Ferro” é um filme construído sobre uma fórmulas. O esqueleto narrativo da trama segue, passo a passo, o mesmo caminho escolhido por Raimi. Não há qualquer inovação. A primeira metade esmera-se em mostrar a origem do Homem de Ferro, inserindo o personagem dentro de um contexto (inclusive político, com referências à ação norte-americana no Oriente Médio, uma novidade dentro do gênero) e criando, em torno dele, uma galeria de indivíduos com quem vai estabelecer relações mais ou menos amistosas. Na segunda metade, concentra-se em apresentar o vilão (Jeff Bridges) e colocar ambos em rota de colisão, além de criar um interesse amoroso (Gwyneth Paltrow). Jon Favreau faz isso com competência, embora sem os toques autorais de Raimi e Nolan, cineastas superiores no quesito visual e na complexidade com que tratam os personagens. O diretor pontua a trama com seqüências de ação vibrantes (o clímax parece muito com “Transformers”, de 2007), e usa o humor como elemento de empatia entre protagonista e audiência. Neste último ponto, Favreau tem a ajuda inestimável de um dos pontos fortes de “Homem de Ferro”: o ator Robert Downey Jr. A escalação do astro no papel do personagem-título foi um lance de arrojo do cineasta, e acabou se mostrando o maior acerto dele. Downey Jr parece inteiramente à vontade no papel. Sua expressão cínica, bem como a capacidade de disparar diálogos rápidos e cheios de segundas intenções com naturalidade, acentua ainda mais o humor naturalmente presente no roteiro (“Tecnicamente houve um conflito de agenda com a capa de maio, mas sorte que em dezembro a capa eram gêmeas”, responde ela, divertido, à pergunta sobre o boato de que havia levado para a cama todas as últimas doze garotas da capa de certa revista masculina). Ajuda muito, também, que a persona pública de Robert Downey Jr reforce a personalidade criada pelos roteiristas para o homem por dentro da armadura. Como se sabe, o ator viveu um drama pessoal (e muito público) durante nove anos, desde 1996. Alcoólatra, viciado em crack e cocaína, passou duas longas temporadas na prisão e andou desempregado por muito tempo. Foi dado como caso perdido por muita gente, mesmo por aqueles que nunca duvidaram de seu talento inegável. Ele já vinha ensaiando uma volta por cima (em filmes elogiados como “O Homem Duplo” e “Zodíaco”), e aqui se transforma em Tony Stark de corpo e alma. O filme não aborda diretamente, por exemplo, o alcoolismo do personagem, mas o passado do ator se alia às várias cenas em que o vemos de copo na mão para lembrar o público que este é um assunto a ser explorado em filmes futuros da franquia. Como de hábito nos filmes de super-heróis, “Homem de Ferro” foi planejado como uma trilogia. Pensando nisso, Favreau tratou de utilizar uma estratégia já aprovada em séries como “X-Men” e “Homem-Aranha”, tratrando de espalhar pontas soltas e personagens secundários que, no futuro, podem se tornar aliados ou antagonistas poderosos, caso do militar boa-praça interpretado por Terrence Howard. Numa prova de ambição e audácia da Marvel, “Homem de Ferro” também é o primeiro elo plantado pelo novo estúdio para realizar, num futuro de médio prazo, um encontro de vários super-heróis da franquia, num filme de Os Vingadores (espécie de Liga da Justiça da Marvel), reunindo poderosos como Capitão América, Thor e Namor. Vem daí a insistente aparição de agentes secretos de uma organização governamental chamada S.H.I.E.L.D. Quem conhece os quadrinhos sabe que a agência serve como elo de ligação entre todos os heróis da Marvel. O novo “Hulk” (2008), por exemplo, já traz uma cena em que Robert Downey Jr reaparece como Tony Stark. Dá para notar, por tudo isso, que os planos do novo estúdio não se resumem a um filme ou outro, mas vão muito além – e incluem se estabelecer como uma nova e poderosa força no mapa do poder de Hollywood. Não dá para negar, aliás, que até mesmo a escolha do diretor de “Homem de Ferro” faz parte de uma estratégia empresarial bem definida. Afinal, a Marvel já aprendeu, com o “Hulk” de Ang Lee (o mais subestimado de todos os longas-metragem oriundos de quadrinhos desde, talvez, “O Corvo”), que dar corda à visão de cineastas autorais não é, comercialmente, uma atitude inteligente. Considerando tudo isso, é fácil perceber que “Homem de Ferro” é exatamente o filme de super-heróis que o estúdio deseja. Tem uma história convencional que não subestima a inteligência do público, é povoada de bons atores, inclui subtexto com molho político (sem excessos), e amarra tudo seqüências de ação realistas. Não vai mudar o mundo, mas diverte. http://www.cinereporter.com.br/dvd/homem-de-ferro/
Comédia romântica metalingüística agrada por criar empatia entre os personagens bonzinhos e o espectador Por: Rodrigo Carreiro “Esta é a história de um homem chamado Harold Crick e seu relógio de pulso”. A frase de abertura da comédia romântica “Mais Estranho que a Ficção” (Stranger than Fiction, EUA, 2006) dispensa uma análise mais profunda para deixar claro que o filme vai tentar, à custa de criatividade e uma boa pitada de metalinguagem, fugir do incômodo lugar comum que os exemplares do gênero têm freqüentado, desde sempre. O filme, bastante elogiado pela crítica internacional, marcou a elevação do roteirista Zach Helm à categoria dos escritores-autores, seguindo a linha aberta por Charlie Kaufman (“Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”). A comparação com Kauffman não é despropositada. A ligação entre os dois roteiristas inclusive foi explorada ao máximo pela Sony, estúdio responsável pela distribuição do filme. Há, sim, semelhanças – e elas são ainda maiores do que se pode imaginar. Além de abusar da metalinguagem, criando uma “ponte” entre realidade e ficção, entre personagens da história e criadores dela, o filme também não tem medo de celebrar um romantismo deslavado, à moda antiga mesmo, assim como Kaufman faz. “Mais Estranho que a Ficção” é podre de romântico, tanto que defende a idéia (um bocado polêmica) de que por amor vale tudo, até mesmo largar mão da ousadia e ser convencional. Dirigido por Marc Forster, cineasta eficiente que ainda não conseguiu mostrar uma personalidade própria, apesar de dirigir filmes divertidos e interessantes (“A Última Ceia”, “Em Busca da Terra do Nunca”), o filme tem uma narrativa moderninha, ágil, e isto inclui uma série de efeitos gráficos utilizados, aqui e acolá, para sublinhar a personalidade obsessivamente pragmática do protagonista, o tal Harold Crick. Inteligentemente, Forster usa o recurso (visto antes em “Clube da Luta”, de David Fincher) com discrição, sem exageros, e isto garante que a narrativa seja veloz e cativante, sem irritar pelo excesso e pela repetição. Harold Crick é um auditor da Receita Federal. Um metódico de carteirinha. O tipo de pessoa cuja vida é governada de forma autocrática pelos números. Ele passa a escova nos dentes 76 vezes a cada nova escovada. Pega sempre o mesmo ônibus, às 8h17, e tira um minuto e meio de pausa no trabalho, no meio do dia, para um cafezinho. Ou seja, Crick é um autômato, uma espécie de robô de carne e osso que repete funções sem pensar sobre elas. Até o dia em que Harold começa a ouvir uma voz feminina – a mesma voz feminina que nós, do lado de cá da tela ouvimos. Uma voz que narra a vida dele. Harold não acredita. Acha que está ficando louco. Ao invés de um diagnóstico de esquizofrenia, contudo, ele recebe da terapeuta a dica de procurar um professor de Literatura. Não demora muito para que Harold descubra que é personagem de um romance, e está condenado a morrer no final, a não ser que descubra quem é a autora. Nisso, a platéia está à frente dele, pois sabemos que a mulher é Karen Eiffel (Emma Thompson), escritora famosa que sofre de bloqueio criativo. A novidade apavorante, ao contrário do que se pensa, é a melhor coisa que poderia acontecer a Harold. A voz ameaçadora lhe arranca da letargia e o faz vivo novamente. Quase sem querer, ele começa a fugir da rotina – e numa comédia romântica, todos sabemos onde isso vai dar. Harold, claro, se apaixona pela mais improvável das criaturas: Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma simpática padeira que caiu na malha fina e está sendo investigada… por Harold. OK, “Mais Estranho que a Ficção” está longe de ser o filme que vai mudar sua vida. Até mesmo o criativo roteiro comete falhas grosseiras, como abrir espaço para uma personagem sem qualquer função narrativa: uma mulher durona (Queen Latifah), enviada a Karen pela editora, preocupada com o prazo de entrega do romance. Logicamente, a moça está ali apenas para servir de ouvido à escritora, de forma que ela possa compartilhar seus pensamentos na platéia sem ser mostrada como doida ou excêntrica, por falar sozinha. Afinal de contas, a narração em off (muleta que serve de solução para casos parecidos) já está sendo usada, mas em contexto tão diferente que utilizá-la de novo confundiria a cabeça do público. De qualquer forma, a atmosfera cômico-melancólica funciona que o filme abraça funciona bem. O texto de Zach Helm é divertido, e cria empatia real entre o espectador e o personagem principal. O desempenho acima da média do elenco faz o resto. De repente, estamos torcendo para que tudo dê certo entre Harold e Ana, porque eles parecem tão bonzinhos, tão gente como a gente. Curiosamente, a solução bolada pelo roteirista para criar o inevitável happy end inclui até mesmo uma autocrítica disfarçada, injetada na história através da difícil decisão que Karen precisa tomar com relação ao destino do seu protagonista (“eu me contento com bom, ao invés de sublime”). Sim, ela está falando do filme. Zach Helm fez de propósito. E está tudo bem. http://www.cinereporter.com.br/dvd/mais-estranho-que-a-ficcao/
Apesar dos deslizes no segundo ato, filme de Joe Wright surpreende pelo arrojo da narrativa e pela bela cinematografia Por: Rodrigo Carreiro Seria fácil, para qualquer crítico, reduzir “Desejo e Reparação” (Atonement, Reino Unido/França, 2007) a um daqueles dramas de época lindos e ocos, feitos sob medida para faturar prêmios como o Oscar. Fazer algo assim, porém, seria falso e injusto. O longa-metragem assinado por Joe Wright, adaptação cinematográfica de romance do prestigiado dramaturgo inglês Ian McEwan, até guarda algumas características do gênero, como a pompa solene em figurinos e diálogos, e um segundo ato bastante irregular. Só que também transborda elegância nos aspectos técnicos (fotografia, direção de arte, música) e tem a coragem de dar uma guinada surpreendente e original, no terceiro ato, para levantar uma discussão interessante sobre um tema delicado: será que a arte tem o poder de corrigir os percalços da vida? Feito com orçamento generoso para os padrões da Inglaterra (US$ 30 milhões), por um diretor jovem – 35 anos durante as filmagens – e com olho apurado para o visual, “Desejo e Reparação” teve certa dificuldade para vencer a resistência inicial da crítica norte-americana, que esperava algo como uma continuação informal de “Orgulho e Preconceito” (2005). Era fácil pensar assim, pois os dois filmes reúnem Joe Wright à atriz Keira Knightley em dramas de época que abordam amores impossíveis. Ocorre que esta adaptação do livro de McEwan, assinada pelo roteirista Christopher Hampton (Oscar por “Ligações Perigosas”, de 1988), vai além tanto em escala quanto em ambição artística. É um filme cujo visual esplêndido jamais parece gratuito, e surpreende o espectador com não apenas uma, mas duas reviravoltas repletas de ressonâncias emocionais inusitadas. Para começo de conversa, “Desejo e Reparação” é um brinco cinematográfico. A estética, por si só, já seria suficiente para valer uma conferida atenta. Mas a beleza cinematográfica da direção de arte, dos figurinos, da fotografia e da música não é gratuita. Serve à narrativa, como acontece nos melhores filmes. Tome como exemplo o fantástico plano-seqüência de cinco minutos que divide o filme em dois. A tomada sem cortes mostra Robbie (James McAvoy, excelente), um dos personagens principais, cruzando a praia francesa onde as forças britânicas acabam de desembarcar, num momento crítico da Segunda Guerra Mundial (1940). Ele é um soldado que não deseja estar ali. Enquanto cobre uma distância de uns 300 metros, Robbie passa por um coral de militares que entoa uma canção de esperança. De repente, a leve melodia que compõe a trilha sonora e acompanha a trajetória do personagem, ao fundo, se eleva e une ao coro dos soldados. As músicas se fundem por alguns instantes, até que Robbie siga o seu caminho. A edição de som complementa o prodígio do trabalho de câmera. Espectadores desatentos podem achar que o plano-seqüência é gratuito, um malabarismo inútil feito para ganhar prêmios. Mas se a cena fosse decupada da forma tradicional, com cortes a cada cinco ou seis segundos, a platéia seria privada de compreender a extensão da paixão que Robbie nutre por Cee (Knighley, boa). Sim, porque o jovem soldado encara no passeio horrores inomináveis – mortos, feridos, bêbados de prazer e medo, destruição por todo lado – sem prestar a mínima atenção. Os horrores da guerra não se comparam ao tumulto interior, ao caos que está dentro dele. A impossibilidade da paixão dói muito mais em Robbie do que a guerra. O plano-seqüência exprime visualmente este conceito. Antes, através de um Tarantinesco primeiro ato, o diretor já havia demarcado uma distância segura do drama romântico de época tradicional, ao mostrar uma série de eventos banais (um mergulho numa fonte, a entrega de uma carta) de duas perspectivas diferentes. É o mesmo truque produzido por Tarantino em “Jackie Brown” (1997), aqui executado com presteza. A idéia é simples: mostrar como uma mesma situação dramática, ou uma série delas, pode produzir significados diferentes, até mesmo opostos, dependendo da perspectiva que se veja. O truque completo, porém, só se completará no terceiro ato, quando finalmente a platéia saberá todas as nuances emocionais quer estavam em jogo no triângulo amoroso entre Robbie, Cee e Briony (Saoirse Ronan na adolescência e Romola Garai na fase adulta, ambas eficientes). A fotografia de Seamus McGarvey é excepcional, e não apenas por causa do já citado plano-seqüência. Observe como o fotógrafo manipula com firmeza e sabedoria as múltiplas fontes de luz natural nas tomadas interiores, usando inclusive a luz de vela (sempre complicada de fotografar) para conseguir um efeito que é ao mesmo tempo romântico e misterioso. Há uma cena noturna, externa, também fotografada de maneira magistral. Claro que ele tem a ajuda de uma direção de arte suntuosa, e de belos figurinos – o vestido verde utilizado por Keira Knightley na cena-chave não apenas renega um chavão do uso de cores em cinema (o vermelho como a cor da sedução), mas também realça o turbilhão de emoções da personagem, ao colocá-la claramente num patamar emocional diferente de todos os demais que fazem parte da cena. A trilha sonora de Dario Marianelli também tem muito pontos positivos, pois utiliza de forma criativa ruídos naturais para dar um toque original à percussão. O uso constante do som de teclas de uma máquina de escrever, dando ritmo à melodia, também serve à narrativa – é uma pista da surpreendente guinada radical que a história dá no terceiro ato, que finalmente esclarece o grande tema do filme: a culpa, e a tentativa de usar o poder da arte para, de alguma forma, tentar reparar erros cometidos no passado. Joe Wright cria uma tensão ambivalente entre ficção e realidade para abordar este tema, que já havia sido magnificamente explorado pela linda imagem silenciosa do soldado amargurado no cinema, tornando insignificante pela gigantesca imagem do beijo apaixonado de uma projeção do filme “Cais das Sombras”, de Marcel Carné (1938). É provável que os espectadores mais tradicionais se decepcionem com o final metalingüístico de “Desejo e Reparação”, mas é exatamente este final, original e surpreendente, que faz o filme crescer silenciosamente na cabeça de quem o viu. Até porque o segundo ato, que deixa de lado o terceiro vértice do triângulo amoroso para se concentrar na paixão frustrada de Robbie e Cee, havia antes diluído o tema principal, adicionando um punhado de melodrama banal na receita e se afastando do estudo sobre a culpa que é o romance de Ian McEwan. Tivesse conseguido impor mais distância ao clichê do romance impossível em tempo de guerra (história que Hollywood adora desde “Casablanca”), Joe Wright teria feito um filme perfeito. http://www.cinereporter.com.br/dvd/desejo-e-reparacao/
Comédia mistura desenhos de Pernalonga, filmes de gângsters dos anos 1930/40 e artes marciais Por: Rodrigo Carreiro O homem aterrorizado está caído no chão. Olha para cima e vê um gângster de paletó e gravata negros, com camisa branca, caminhar em direção a ele. A trilha sonora ataca com um tema de jazz. Aí o gângster, com um machado na mão, começa a dançar no ritmo dos metais da canção. Depois que mata a vítima, se junta aos outros capangas – todos vestidos com roupas idênticas – e começa uma coreografia abusada. A cena faz parte da abertura de “Kung-Fusão” (Gong Fu, Japão/EUA, 2005) e serve de aperitivo para o coquetel alucinado de humor, desenho animado e artes marciais que o filme de Stephen Chow oferece ao espectador. Chow, aos 41 anos e no sétimo longa-metragem como diretor, é um dos mais populares diretores chineses entre os jovens. Os filmes que ele faz poderiam ser descritos como o lado fast food dos filmes orientais. Enquanto cineastas como o sul-coreano Park Chan-Wook tentam arrumar espaço na cinematografia ocidental pela porta da frente, trabalhando com temas universais (como a vingança, no caso citado) à moda oriental, Stephen Chow apronta um coquetel de influências que inclui filmes do Pernalonga, musicais da Broadway, Bruce Lee, games de Playstation, os irmãos Marx e “Matrix”. Quer entrar pela porta de trás. E o resultado é aloprado, original e divertido, embora não vá mudar o mundo. O filme se passa nos anos 1930/40, em Hong Kong. O personagem principal se chama Sing (o próprio diretor Chow) e é um bandido de terceiro categoria. Ele se faz passar por mafioso da Gangue do Machado, grupo de marginais que domina a cidade, para tentar arrumar uns trocados em uma favela chamada Chiqueiro, na periferia da cidade. No momento em que Sing passa vergonha apanhando dos bêbados da favela (cuja líder é uma impagável senhora que veste camisola, bobs nos cabelos e cigarro no canto da boca, como uma Dona Florinda de olhos puxados), a gangue aparece no lugar para tomar satisfações. O que se segue é uma paródia da famosa seqüência de Neo contra 50 versões do Sr. Smith, em “Matrix Reloaded”, elevado ao cubo. A violência de “Kung-Fusão”, muito bem definida pela seqüência, é a mesma dos desenhos de Chuck Jones (“Pernalonga”): uma violência que não dói. Os murros quebram paredes, os chutes atiram adversários dezenas de metros para trás, e os personagens correm em velocidade supersônica, de modo que a platéia não consegue ver as pernas deles, mas apenas a poeira levantada pelos pés, à maneira do Papa-Léguas. Tudo isso é feito com o uso de truques de montagem, efeitos computadorizados, trampolins escondidos, ginástica olímpica e ângulos bizarros de câmera. Detalhe: o orçamento magro de US$ 20 milhões não atrapalha, pois a ilusão é perfeita. Sem precisar ser realistas, as cenas ficam impressionantes. Outra coisa que impressiona é o apetite do diretor Stephen Chow pelas referências visuais, que não páram de aparecer na tela. A trilogia “Matrix” é emulada em muitas cenas (inclusive com o uso do conceito do “salvador da humanidade”), há diversos trechos inspirados em western spaghetti (trilha sonora, enquadramentos e montagem em câmera lenta) e uma hilariante seqüência que parece retirada diretamente dos filmes de Robert Rodriguez sobre assassinos mexicanos que se travestem de músicos. Se muitas das cenas são claramente exageradas, isso não importa: tenha em mente que Stephen Chow está fazendo uma comédia de ação, misturada com filme de gângsteres e desenho animado com atores de carne e osso. Não é um filme tradicional de artes marciais. Claro que isso nem sempre se traduz em cenas eficientes. Muito do humor existente no longa-metragem é revisitado dos filmes anteriores do cineasta (como o brilhante e superior “Kung Fu Futebol Clube”, que pode ser encontrado em DVD), o que faz o filme ser menos engraçado para aqueles que já conhecem o que Chow é capaz de fazer. Além disso, algumas seqüências de luta ficaram longas demais – é o caso da batalha final entre dois lutadores, que fazem uma briga inspirada no quebra-pau entre Neo e Smith (“Matrix Revolutions”), só que bem-humorada. A duração excessiva faz a piada perder a graça antes do fim, o que não é boa coisa. Mas deslizes eventuais como esse não tiram o brilho de “Kung-Fusão”. http://www.cinereporter.com.br/dvd/kung-fusao/
Comédia chinesa alucinada mistura futebol e artes marciais em filme criativo e cheio de idéias Por: Rodrigo Carreiro Junte em um caldeirão influências díspares como filmes de Bruce Lee, faroestes spaghetti, Pelé, jogos de fliperama e/ou Playstation, comédia adolescente norte-americanas e efeitos especiais criados com computadores caseiros. Imaginou o resultado? Pois é provável que a salada resultante na sua cabeça seja bem diferente de “Kung Fu Futebol Clube” (Shaolin Soccer, Hong Kong/China, 2001), a estridente brincadeira de Stephen Chow que lançou o cineasta chinês nos Estados Unidos e tornou-se coqueluche entre jovens cinéfilos descolados. O filme pode ser encontrado em um pouco divulgado DVD nacional da distribuidora Buena Vista. É engraçada e incomum a maneira como a comédia adolescente chinês, co-produzido em Hong Kong, chegou às terras brasileiras. O longa-metragem foi vendido para a distribuidora norte-americana Miramax dentro de um pacote que incluía, entre outros, o épico “Herói”. Os filmes faziam parte de um lote de obras recomendadas pelo diretor Quentin Tarantino aos irmãos Bob e Harvey Weinstein, donos da Miramax. Alguns filmes, como o citado “Herói”, tiveram lançamento de respeito nos EUA. Outros, como “Kung Fu Futebol Clube”, foram atrasados em muitos meses, e até reeditados, para poderem agradar às platéias ocidentais. É compreensível que “Kung Fu Futebol Clube” tenha soado como uma piada exótica para o espectador médio norte-americano, já que o escopo da trama é fincado em uma combinação de esportes pouco comuns no país dos ianques: futebol e artes marciais. Se o público dos EUA curte pancadaria oriental (desde que devidamente “ocidentalizada”, o que significa coreografias mais realistas e discretas, o que não é o caso deste filme fantasioso), não entende nada de futebol. Pois jogue no lixo toda e qualquer tentativa de dar ao filme uma aparência de realidade comum, e você terá nas mãos um produto no mínimo bizarro. A trama é clássica, do tipo que você já viu muitas vezes antes. Técnico decadente de futebol (Man Tat Ng) monta, com a ajuda de um jovem mendigo praticante de um estilo decadente de kung fu (o diretor e roteirista Chow), um time de futebol formado por lutadores que sobrevivem em subempregos. Os atletas aplicam ao jogo princípios da luta, transformando-o em um esporte completamente diferente, onde pulos de cinco metros de altura, cambalhotas impossíveis e chutes que entortam e derrubam traves são comuns. Dessa forma, entram em um torneio internacional cujo patrocinador é o arqui-rival do técnico (Yin Tse), um sujeito rico, arrogante e trapaceiro. No meio da confusão há até espaço para o jogador-mendigo arrumar uma paquera com uma timida garota operária que faz pão, numa venda no meio da rua, usando, também, uma técnica de kung fu. Estranho? Pois espere até ver o filme. Embalado por uma trilha sonora épica surrupiada dos antigos faroestes italianos, “Kung Fu Futebol Clube” é criativo até a medula, mas extremamente exagerado, mais ou menos como se os personagens de “Jaspion” resolvessem chutar bolas com pernas mecânicas de velocidade supersônica. O futebol praticado no filme, obviamente, é um arremedo de esporte que serve apenas como veículo para malabarismos impossíveis, como os inacreditáveis chutes desferidos pelo proagonista e capitão do time. Basta dizer que, no primeiro tiro que experimenta, com uma lata de cerveja, o rapaz manda o objeto do outro lado da cidade (e a latinha ainda destroça um muro!). Isso é só o começo. As seqüências de futebol são deliciosas, um verdadeiro espetáculo de humor campy, exagerado, com uso brilhante de computação gráfica (perceba que a bola quase nunca é de verdade, e sim gerada por computador) e um verdadeiro show de edição do desconhecido Kit-Wai Kai. Não dá para levar a sério um filme em que a mocinha conquista o protagonista com um par de tênis furados, remendados com pedaços de pano com a estampa da Hello Kitty, mas “Kung Fu Futebol Clube” não foi feito mesmo para ser levado a sério. A segunda metade da produção – especialmente depois que o time dos futi-ninjas entra em ação de verdade, dentro do torneio – é alucinada e alucinante, mostrando que as artes marciais podem, quando bem utilizadas, funcionar de modo exemplar dentro de qualquer gênero cinematográfico, inclusive a comédia. http://www.cinereporter.com.br/dvd/kung-fu-futebol-clube/
Presença naturalista do elenco desconhecido dá vida a um filme que capta o ritmo circular da vida nas cidades grandes Por: Rodrigo Carreiro O cineasta Chico Teixeira se auto-define como um sujeito triste. Melancólico não; simplesmente triste. Leve em conta esta observação importante antes de assistir a “A Casa de Alice” (Brasil 2007), pequeno drama familiar cuja textura apertada e acinzentada realça o aspecto claustrofóbico da vida de intrigas, informações escondidas e picuinhas de uma família típica de classe média que tenta sobreviver no caos urbano de uma grande metrópole. O diretor, egresso do documentário e que faz aqui a estréia no cinema de ficção, consegue impor ao filme o ritmo monótono e circular da vida nas cidades grandes. Mais importante ainda, imprime ao resultado final uma sensação de tristeza que remete ao seu próprio estado de espírito. “A Casa de Alice” usa o microcosmo de uma família de classe média baixa para retratar uma visão pessimista dos relacionamentos humanos. Toda a história é contada do ponto de vista de Alice (Carla Ribas), manicure na faixa dos 40 anos que vive um casamento modorrento com o motorista de táxi Lindomar (Zé Carlos Machado). Eles moram no apartamento apertado da mãe dela, Dona Jacira (Berta Zemel), com três filhos adolescentes. É uma vida em banho-maria, onde nada parece acontecer. De forma tímida, mas firme, a câmera de Chico Teixeira invade os espaços íntimos de cada personagem para expor suas fraquezas, traições e segredos. Um dos rapazes rouba da avó, outro se prostitui, e assim por diante. Graças à experiência anterior com documentários, Chico Teixeira filma tudo com uma aparência acinzentada, monocromática. Imprime um ritmo monocórdico e aproveita a ausência de trilha sonora para aderir a uma estética naturalista que vem dando bons frutos no cinema brasileiro contemporâneo (“Cinema, Aspirinas e Urubus”, “Cão Sem Dono”). A excelente fotografia de Mauro Pinheiro Jr. usa os corredores estreitos e os cômodos apertados do apartamento da família para ressaltar o isolamento dos personagens. Ao mesmo tempo, as cores dessaturadas sublinham o desgaste das relações familiares. Cada membro da família vive às voltas com os próprios problemas. Ninguém se dá conta da desagregação do ambiente familiar, a não ser Dona Jacira. Mas ela está velha, e convive diariamente com a ameaça de ser expulsa da própria casa. Só lhe resta engolir a amargura e seguir em frente. Embora abra espaço relativo para a rotina e as preocupações de cada personagem, o longa-metragem focaliza principalmente o drama de Alice, depois que ela passa a receber o assédio de um antigo namorado (Luciano Quirino) e começa a admitir, pela primeira vez, a possibilidade de estar vivendo um casamento infeliz. Chico Teixeira recusa a tentação de transformar a história em um melodrama familiar – o tom sereno e tristonho está sempre dois degraus abaixo dos excessos de um “Beleza Americana”, por exemplo – e mantém a opção de privilegiar o foco no coletivo, e ao invés de nos dramas individuais. Ao fazer isso, o diretor reafirma uma visão de mundo: a idéia de que o destino é moldado por circunstâncias que escapam de nossas escolhas, e que a acomodação acentua ainda mais essa imobilidade. O caráter minimalista e circular das situações propostas pelo roteiro pode irritar a parcela do público mais acostumada a filmes com começo, meio e fim bem definidos, mas o final de “A Casa de Alice” encaixa perfeitamente na proposta narrativa. De qualquer forma, o principal destaque da produção está no desempenho uniforme do elenco semi-desconhecido, liderado por uma Carla Ribas perfeitamente natural no papel principal. Zé Carlos Machado agrega momentos de humor sutis (preste atenção na ótima cena em que a manicure estréia uma nova forma de depilação, como forma de despertar o interesse adormecido do marido), e o elenco jovem passa perfeitamente a sensação de um grupo do que significa viver dentro de uma casa apertada, em um lugar de perspectivas para o futuro não muito animadoras. http://www.cinereporter.com.br/dvd/casa-de-alice-a/