quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Wall E


História da paixão entre dois robôs é um triunfo cinematográfico que dispensa palavras e fala para todas as idades
Por: Rodrigo Carreiro

Nos idos de 1994, a produção do primeiro longa-metragem inteiramente feito através de computação gráfica estava em andamento, nos estúdios da então novata Pixar. Animado com os resultados do que seria o inovador “Toy Story”, o chefe criativo da empresa, John Lasseter, convocou os três principais subordinados para um almoço que se tornaria lendário. Durante uma tarde, o quarteto (Andrew Stanton, Pete Docter e o falecido Joe Ranft) discutiu idéias para futuros filmes. Os argumentos de “Vida de Inseto”(1998), “Monstros S/A” (2001) e “Procurando Nemo” (2003) nasceram naquele almoço. A idéia inicial de “WALL•E” (EUA, 2008) também germinou na mesma ocasião, com uma única imagem: um robô vivendo sozinho numa Terra sem humanos. Aos poucos, Stanton desenvolveu a idéia. A paixão entre dois seres mecânicos, produzidos em um intervalo de 700 anos e tendo um planeta devastado como pano de fundo, demorou longos 14 anos para tomar forma. O resultado, arrebatador, é um triunfo cinematográfico que dispensa palavras e fala para todas as idades.
Neste intervalo de 14 anos, o pequeno e promissor estúdio de animação produziu oito longas-metragens, todos bem sucedidos, e virou um peso-pesado entre os estúdios de cinema dos Estados Unidos. Além de manter a hegemonia no ramo da animação computadorizada, a empresa detém a proeza de só fazer filmes bons, sem jamais ter assinado um fracasso de crítica ou de público. Via de regra, uma película com o selo da Pixar coleciona elogios de especialistas e milhões de dólares. Talvez por isso, o impacto positivo causado por “WALL•E” não chega a ser uma surpresa – ao longo do tempo, as pessoas aprenderam a esperar da Pixar sempre o melhor. “WALL•E” consegue a proeza de saciar as mais altas expectativas e ir além, graças a uma conjunção rara de talentos. O que temos aqui é um trabalho perfeito, absolutamente deslumbrante em estética e narrativa. Um filme cuja direção, impecável, amarra em uma história cheia de graça um grande trabalho de edição de som, iluminação, fotografia e concepção visual.
A história tem como protagonista o pequeno personagem-título. WALL•E é um robô compactador de lixo. Ele fazia parte de uma carga composta por milhões de aparelhos idênticos, deixados na Terra pela humanidade, depois que esta exauriu o planeta, POR VOLTA DO ANO 2100. Atulhado de lixo e tóxico demais para abrigar vida, o planeta acabou abandonado pelos seres humanos, que partiram pelo espaço em naves-colônia gigantescas, pretendendo retornar cinco anos depois, quando os faxineiros eletrônicos terminassem o serviço. Mais de 700 anos depois, o enferrujado WALL•E é o último compactador em atividade – e a quantidade descomunal de lixo continua lá. Ele continua fazendo seu trabalho diariamente, mas desenvolveu uma personalidade quase humana. Mora num velho caminhão-baú, coleciona peças sobressalentes e bugigangas (isqueiros, lâmpadas, garfos), e se diverte assistindo a trechos do musical “Alô, Dolly” (1969), provenientes de uma velha fita VHS que salvou do lixo. O filme lhe desperta sentimentos (sim!) de solidão.
Nesta existência estóica, a única companhia do robozinho é uma barata de estimação. A rotina de centenas de anos do aparelho enferrujado é quebrada com a chegada de uma sonda de tecnologia avançada. EVA (óbvia referência bíblica) vem à Terra com a missão de procurar vestígios de vida em desenvolvimento. Os dois se encontram, e a sonda percebe que um insólito achado de WALL•E pode significar uma revolução para a humanidade. É o início de uma jornada que levará ambos a uma limpíssima espaçonave que passeia preguiçosamente pelo sistema solar, a milhões de quilômetros de distância do planeta. Nesta nave, em que vivem os gordos e flácidos descendentes dos humanos (mudanças corporais são conseqüência da deterioração do esqueleto e da musculatura devido à ausência permanente de gravidade, mas representam uma alfinetada certeira no sedentarismo típico norte-americano), os dois robôs vivem uma mistura de romance, comédia e aventura, cujo único minúsculo porém acontece no clímax, que não chega a emocionar como todo o restante.
Um detalhe importantíssimo é que o roteiro explica tudo disso usando um fantástico design de som, quase sem palavras. Dar informações à platéia através de diálogos é uma técnica útil, mas que empobrece um filme quando usada em excesso. Graças à direção meticulosa, em que cada plano é planejado e decupado para se concatenar com o próximo e produzir um novo significado, e ao desenho de som meticulosamente planejado, a aventura de narrar o avanço da história sem usar palavras torna-se inteiramente bem sucedida. Além disso, o roteiro co-escrito pelo diretor, junto com Jim Reardon, encontra espaço para espremer dezenas de detalhes deliciosos e críticas sutis ao comportamento humano. Observe, por exemplo, como na espaçonave gigante as tarefas mais básicas, como limpar o lixo e cortar cabelos, deixaram de ser efetuadas pelos humanos, tendo sido relegadas aos robôs – que, contraditoriamente, acabam se tornando mais preocupados com a preservação da vida do que os próprios homens. Note como o CEO da empresa responsável pelo cruzeiro espacial usa um púlpito semelhante ao utilizado pelo presidente dos EUA para se comunicar com as pessoas. E delicie-se com as referências sutis a obras como “2001” (HAL 9000) e “Alien” (a “expulsão” da nave).
Mais uma vez, a Pixar foi capaz de criar um visual impressionante, graças à adoção de um organograma diferente pela equipe de criação gráfica. Sob a supervisão do mestre Roger Deakins (“
Onde os Fracos Não Têm Vez”), que serviu de consultor visual, os animadores foram comandados por dois diretores de fotografia, um dedicado a comandar a câmera e outro lidando com a luz. Desta forma, eles conseguiram criar dois universos completos, inteiramente diferentes entre si, com enorme profusão de detalhes e texturas. O resultado alcançado é de cair o queixo. Atente como a Terra devastada, em que montanhas de lixo se equilibram entre arranha-céus vazios, é sempre vista através de uma fina névoa, proveniente da poeira acumulada, que deixa a iluminação opaca e difusa – experimente visitar um lixão de verdade e verá que a luz se propaga exatamente desta maneira por lá. O choque entre esta realidade suja e analógica e o ambiente asséptico da nave-mãe, imaculadamente limpa e repleta de superfícies brilhantes, não poderia ser maior. Nos dois casos, o trabalho de iluminação é absolutamente perfeito.
Se os ambientes são impecáveis, o mesmo pode ser dito dos personagens. Todo sujo de óleo e recoberto por pequenos amassões, o robô WALL•E se move através de duas esteiras, possui duas garras e tem, de longe, a aparência de um pequeno trator. Demonstrando ter aprendido bem uma velha lição sobre personagens não-humanos, o time de designers da Pixar complementou o robô com um binóculo cujas lentes, manipuladas com suavidade, dão a impressão de olhos. Os olhos, como Steven Spielberg ensinou em “E.T.” (cuja aparência inspirou o próprio WALL•E), compõem o elemento mais importante de qualquer personagem não-humano. São eles que dão humanidade – alma – ao personagem. O olhar esperto e resignado de WALL•E permite que a platéia se solidarize com ele. Já a robô EVA, pintada com um branco translúcido que permite a visualização das engrenagens eletrônicas, possui as linhas suaves e elegantes de um iPod (de fato, ela foi desenhada pelo mesmo Jonathan Eve que cria o aparelho da Apple, aproveitando a ligação umbilical entre as duas empresas). Ela também tem olhos: um par de luzes azuis no meio do “rosto” de vidro negro. O formato dessas luzes permite que a platéia perceba qual o “sentimento” dominante da robozinha fêmea em cada cena.
Os olhos dos dois robôs são elementos narrativos fundamentais. Eles têm dupla função. Além de garantir a “humanização” das maquinas, permitindo à platéia a identificação com os sentimentos de ambos, ajudam a narrar a progressão dramática da história, graças à decisão arrojada de dispensar as palavras. Sim: durante a maior parte do tempo, “WALL•E” é quase um filme mudo. Os poucos diálogos, tratados como acessórios dispensáveis, ocorrem durante a segunda parte da projeção. A primeira metade do longa-metragem, portanto, foi um desafio cinematográfico de peso, e o sonho de todo diretor de cinema: contar uma história sem palavras. Este desafio não era inédito para a Pixar, que estabeleceu uma tradição de curtas-metragens sem diálogos, mas a expansão deste recurso para a quase totalidade de um longa-metragem foi um empecilho a mais para o filme funcionar – um empecilho que o diretor, Andrew Stanton, dribla de modo brilhante.
A preocupação com os mínimos detalhes e o perfeccionismo visual contribuem decisivamente para a clareza narrativa de “WALL•E”, mas o resultado não seria tão interessante sem a extraordinária concepção de som, deixada a cargo do craque Ben Burtt. O designer sonoro, dono de quatro Oscar, é íntimo dos robôs – ele concebeu o som dos seis “Guerra nas Estrelas” – e por isso foi chamado para o trabalho. Para criar todos os efeitos sonoros e a edição de som meticulosa do longa-metragem, Burtt lançou mão de todo o seu arsenal de truques. Montou uma biblioteca com 2.400 arquivos sonoros e, munido das ferramentas tecnológicas mais avançadas, inventou sons cômicos e dramáticos para cada protagonista, muitas vezes alterando eletronicamente vozes humanas. O trabalho do cineasta Andrew Stanton consistiu, portanto, em combinar os sons com a expressão corporal (?) das máquinas, desenvolvida pelos animadores, pincelando a história com momentos de comédia e romance. E tudo funciona às mil maravilhas.
Eleger o melhor filme da Pixar não é apenas trabalho duro, mas impossível. Filmes, como se sabe, são matéria subjetiva – nunca se sabe quais nervos sensíveis eles irão atingir, quando exibidos para uma platéia (o filme predileto de um leitor dificilmente será o mesmo favorito de outro). De qualquer modo, não parece exagero afirmar que “WALL•E” é o filme mais puramente cinematográfico já feito pela empresa. Durante seus 97 minutos, todos os elementos nele contidos se harmonizam para contar uma história cheia de graça e emoção, em que o clichê das animações contemporâneas – divertidas tanto para crianças quanto para adultos – cai como uma luva. Até mesmo a mensagem ecológica presente no enredo funciona a contento, pois evita o tom panfletário e didático que outros filmes com o mesmo tema (“
Fim dos Tempos”) adotam sem pudor. No final, os créditos dão um jeito de resumir a história humana mostrando a evolução da pintura através dos séculos, num banho de criatividade. Em resumo, uma obra-prima.
Como se não fosse suficiente, o curta-metragem que mantém a tradição de iniciar toda sessão de um longa da Pixar nos cinemas é primoroso, uma delícia de comédia alucinada no estilo de Chuck “Pernalonga” Jones. “Presto” conta a história de um coelho faminto que sabota o show do parceiro mágico porque este se recusou a alimentá-lo antes do espetáculo. Trata-se de uma sucessão de gags divertidíssima, que inventa uma “explicação” curiosa para o tradicionalíssimo truque da cartola. Não chega a ser o melhor curta-metragem da incrível coleção de filmetes elaborados pelos animadores da empresa norte-americana, mas certamente é um dos mais engraçados, e funciona muito bem no sentido de preparar o espírito da audiência para a narrativa mais elaborada do prato principal.

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