
Tim Burton constrói ópera macabra e criativa a partir de uma conhecida lenda urbana inglesa sobre barbeiro assassino
Por: Rodrigo Carreiro
Tim Burton é uma excrescência, um tumor no panorama contemporâneo da indústria do cinema. Não há outro cineasta que conseguiu construir um bolsão cinematográfico tão excêntrico e antiquado, enquanto permanecia sendo bancado por grandes estúdios. Existem vários diretores que merecem o rótulo de “autores”, mas a maior parte deles (Lars Von Trier, Michael Haneke) milita no cinema independente, onde estão livres para experimentar. Dentro de Hollywood, ser um autor é bem mais difícil. Quem consegue (Clint Eastwood, Woody Allen) quase sempre trabalha seguindo as convenções clássicas de gênero, seja comédia, thriller ou faroeste. Tim Burton não faz isso. O ex-desenhista da Disney criou um nicho personalista para acomodar uma obra que não se encaixa em padrões normais. Ele trabalha em algum lugar que fica na fronteira entre o horror, a comédia e, mais recentemente, o musical.
“Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” (Sweeney Todd: The Demon Barber of Fleet Street, EUA/Reino Unido, 2007) oferece um mergulho vigoroso no universo macabro e sofisticado do cineasta norte-americano. Mesmo trabalhando como diretor contratado, Burton obtém sucesso na tarefa de agregar à fábula sinistra do barbeiro assassino, cuja lenda urbana circula pelas ruas de Londres desde meados do século XIX, a atmosfera de horror engraçado que é característica principal de sua obra pessoal. Afinal de contas, há enorme distância entre o horror praticado por Tim Burton e o horror barato e comercial dos filmes de adolescentes que lotam as salas de cinema ao redor do mundo. O horror de Tim Burton não tenta reproduzir a realidade. É estilizado e irreal, cheio de referências literárias e teatrais, gráfico e engraçado. Macabro, mas sem se levar a sério.
Trata-se do terceiro filme consecutivo do diretor com seqüências musicais mas, ao contrário do que havia ocorrido antes com “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (2005) e “A Noiva-Cadáver” (2006), Tim Burton não se limita a apenas flertar com o gênero musical, inserindo canções dentro de um filme normal. Ele radicaliza. Nos trabalhos anteriores, os números musicais tinham o formato de canções populares, com versos, estribilhos e refrões, e eram intercalados por longos trechos falados normalmente. Já em “Sweeney Todd”, o formato é de uma ópera sombria, sangrenta, em que os atores falam cantando durante 90% do tempo. Na verdade, este formato é algo natural, uma vez que o filme foi baseado no premiado espetáculo musical de Stephen Sondheim, criado em 1979. O longa-metragem utiliza, com poucas alterações, as músicas originais compostas para a peça. Daí o fato de o parceiro natural de Tim Burton, Danny Elfman, não aparecer nos créditos, como de costume.
Por outro lado, se não conta com um fiel escudeiro, Burton se cercou de gente de confiança. “Sweeney Todd” marca a sexta colaboração entre o diretor e o astro Johnny Depp, que revela mais uma faceta de seu talento ao soltar a voz com confiança. Helena Bonham Carter aparece na quarta parceria profissional com o marido, e se sai muito bem no principal papel feminino. A dupla soa afinada em todos os sentidos. Além de possuírem certa semelhança física e demonstrarem afinação e tempo precisos para desfiar as melodias intrincadas, os dois possuem estilos muito parecidos de interpretação, com leve pendor para a caricatura. É uma característica que cai muito bem na atmosfera estilizada das produções de Burton. A curta e delirante aparição de Sacha Baron Cohen (“Borat”), como um barbeiro italiano, também prima pelo aspecto caricatural, e quase rouba a cena. Alan Rickman, na pele de um arrogante juiz, também brilha.
O enredo narra o processo de transformação do pacato barbeiro Benjamin Barker (Depp) em um serial killer excêntrico. Trata-se de uma história aparentemente real, que circula no imaginário popular inglês desde o princípio do século XIX, tendo inspirado diversas peças teatrais, livros e filmes. Aqui, a história começa com o retorno de Barker a Londres, resgatado do mar após uma longa temporada na prisão (as circunstâncias deste resgate nunca são explicadas). Tendo sido afastado por décadas da amada e da filha recém-nascida, pela cobiça do juiz Turpin (Rickman), Barker agora se autodenomina Sweeney Todd. Nas primeiras cenas, o personagem parece ter um plano de vingança. À medida que o filme vai passando, porém, a gente descobre que ele não tem exatamente um plano, apenas um desejo irrefreável de vingança – um desejo que o leva lentamente à loucura. Enquanto ele imagina como castigar o juiz, se instala num velho sobrado, logo em cima de uma padaria decadente dirigida pela igualmente excêntrica Sra. Lovett (Bonham Carter).
Tim Burton sempre foi um romântico à moda antiga (lembrem-se de filmes como “A Lenda do Cavaleiro Sem Cabeça” e “Edward Mãos-de-Tesoura”), e não faz nenhum esforço para esconder que “Sweeney Todd” é, na verdade, uma clássica história de amor, só que encharcada de sangue, vísceras e tortas de carne humana. Na melhor tradição do cinema, o roteiro de John Logan enriquece a narrativa principal com várias subtramas que ecoam o tema do amor impossível. Todos os personagens do primeiro escalão amam sem serem correspondidos, por razões distintas, e sofrem por isso: a Sra. Lovett, o marinheiro Anthony Hope (Jamie Campbell Bower, andrógino e inexpressivo), a adolescente Johanna (Jayne Wisener, bonita mas um tanto apagada), e até mesmo o grande vilão da história, o juiz Turpin.
Demonstrando respeito pela tradição dos espetáculos musicais, Tim Burton mantém a música e o visual extravagante como fios condutores da história, usando a palavra falada como mero elemento de ligação entre os trechos musicais. Numa comparação direta com filmes de narrativa clássica, a música e os diálogos trocam de função em “Sweeney Todd”, e o resultado é uma obra que pode causar certa estranheza a uma platéia acostumada a um padrão de narrativa que se mantém imutável há várias décadas. Sabendo disso, Tim Burton providencia um primeiro ato deliberadamente lento, em que não faz mais do que estabelecer quem são os personagens e quais os laços afetivos que os unem, e dá espaço para que os espectadores possam se acostumar à cantoria. Após a entrada em cena do barbeiro rival Adolfo Pirelli (Baron Cohen, hilariante), “Sweeney Todd” engrena – e vira um filme delicioso, um banho de sangue ao mesmo tempo divertido e assustador.
Como de hábito, o trabalho do veterano designer de produção Dante Ferreti (“Gangues de Nova York”) é avassalador, dando vida a uma Londres opaca, construída a partir de sombras e tonalidades acinzentadas. Tim Burton se aproveita da excelência dos cenários para criar momentos belos (o dueto musical entre o barbeiro e o juiz), assustadores (os assassinatos sangrentos) e engraçados (o duelo com Pirelli, os ensolarados devaneios da Sra. Lovett, com piqueniques na relva). Curiosamente, os problemas de “Sweeney Todd” estão justamente na abertura, com a aparição abrupta e mal explicada do personagem principal, e no final, quando Tim Burton inexplicavelmente deixa em aberto os destinos de dois personagens importantes, mantendo sem resolução uma subtrama que recebeu grande tempo de tela. Fica a impressão de que a inclusão de duas cenas, uma no início e outra no fim, deixaria o belo e estranho longa-metragem quase perfeito.
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