
Thriller coreano é sintese interessante do policial de Hollywood com o suspense asiático
Por: Rodrigo Carreiro
Filmes da Coréia do Sul viraram moda entre cinéfilos descolados, durante o ano de 2004. Duas produções do país asiático, por exemplo, foram grandes atrações na Mostra de Cinema de São Paulo, o maior evento cinematográfico do país. Infelizmente, “Memórias de um Assassino” (Salinui Chueok, Coréia do Sul, 2003) não faz parte da safra que aportou nas salas de projeção brasileiras. Talvez porque se trata de um thriller policial clássico, de temática, estética e narrativas ocidentalizadas. Mesmo assim, é um filme bacana que merece ser visto.
Não há nenhuma dúvida nenhuma sobre a obra de referência de onde o cineasta Joon-Ho Bong retirou inspiração para escrever e dirigir o filme. “Memórias de um Assassino” tem a elegante embalagem estilística e muitos truques narrativos emprestados de “Seven”, o excelente suspense de David Fincher que fechou a década de 1990 como o melhor filme produzido em Hollywood (junto com “O Silêncio dos Inocentes”) sobre a caçada a um serial killer. Vejamos: o filme possui um visual cuidadosamente estilizado; focaliza a investigação, levada a cabo por dois detetives que não se entendem, dos crimes cometidos por um serial killer; possui uma surpreendente seqüência de perseguição bem no meio da narrativa; e termina com um final original e interessante.
O filme é inspirado em um caso real. Entre 1986 e 1991, quando a Coréia do Sul permanecia sob ditadura militar e a população vivia em lei marcial, com toques de sirenes que obrigavam os habitantes das cidades a se recolherem às suas casas, uma pequena cidade rural coreana enfrentou a ameaça de um assassino serial de mulheres. “Memórias de um Assassino” dramatiza os acontecimentos da época, enfocando os esforços da polícia local para tentar capturar o maníaco.
Como a maior parte dos filmes orientais de suspense, a história começa lenta para os padrões de Hollywood. Os primeiros 50 minutos de projeção são gastos para apresentar à platéia os personagens e os laços que os ligam. Park (Kang-Ho Song) é o detetive encarregado do caso. Truculento, ele não está interessado em descobrir o assassino, mas em arranjar um culpado o mais rápido possível, ainda que para isso tenha que recorrer à tortura. Ele tem um parceiro, Jo (Roe-Ha Kim), um tira caladão, obtuso e ainda mais violento.
Logo fica claro, contudo, que a dupla não é capaz de lidar com um assassino frio e metódico. Os locais, então, aceitam a ajuda de um policial de Seul, Seo (Sang-Kyung Kim), voluntário para o serviço. Seo é inteligente, tenaz e esforçado, mas precisa enfrentar não apenas a falta de recursos da polícia coreana, como sobretudo o seu próprio desconhecimento dos métodos sofisticados. Afinal de contas, aprendeu tudo vendo filmes policiais norte-americanos, mas não tem o conhecimento necessário para aplicar na prática essas idéias.
O diretor faz uma interessante síntese dos filmes de suspense norte-americanos com o estilo mais reflexivo do cinema oriental. Há um cuidado evidente com a parte visual do filme, composta por longas tomadas sem cortes e poucos movimentos de câmera; o tratamento de cores é muito bonito e isso fica evidente na bela cena de abertura. O filme abre com uma criança caçando grilos em uma plantação de arroz, algo que aparentemente não tem conexão nenhuma com o caso. Quando a câmera se afasta, no entanto, descobrimos que o arrozal é a cena do crime. O menino correndo por lá é apenas um exemplo da desorganização da polícia local, que não consegue nem mesmo preservar as cenas do crime.
Um destaque evidente no longa-metragem é o elenco. Kang-Ho Song, que interpreta Park, faz um trabalho excepcional, compondo um detetive apressado e despreparado, mas sincero no íntimo. Ele é o responsável pelos toques cômicos do enredo, mas faz isso de forma sutil. Seus métodos de investigação incluem visitas a videntes e conversas com a namorada fofoqueira que sabe tudo sobre os vizinhos. Park desenvolve uma exótica teoria sobre o autor do crime, que o leva a fazer incursões hilariantes por saunas masculinas.
No outro espectro, Roe-Ha Kim transforma o seu Jo em um investigador tão compenetrado e calado que chega a ser melancólico. Os dois são tão diferentes que logo se estabelece uma tensão entre ambos. A química da dupla é muito boa, o que garante ao filme um equilíbrio narrativo perfeito. Isso permite ao cineasta incluir na trama diversas observações a respeito do despreparo da polícia coreana para lidar com criminosos em série, bem como insights sobre a própria vida social no distante país asiático. Isso é bem vindo, e confere uma dinâmica muito boa ao thriller.
Song Kang-ho também sabe conduzir seqüências de ação com perícia. O melhor exemplo está na alucinante seqüência de perseguição na metade do filme. É uma cena exemplar, que consegue temperar com toques cômicos um dos momentos mais fortes e tensos do longa-metragem. O humor inteligente e suave é a grande diferença entre “Memórias de um Assassino” e a sua musa inspiradora, o filme de David Fincher. Joon-Ho Bong pode se orgulhar de ter produzido uma ótima junção entre o thriller ocidental e o filme de suspense asiático.
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