
Tim Burton imprime marca pessoal à refilmagem de um clássico infantil dos anos 1970 e cria fábula sinistra e melancólica
Por: Rodrigo Carreiro
Uma prova incontestável da qualidade de um cineasta é a direção de um grande projeto de estúdio. Diretores com estilo pessoal e iconoclasta têm dificuldade em imprimir uma marca pessoal a esse tipo de filme, em geral produtos de orçamento gigantesco. Se o projeto é, ainda por cima, a refilmagem de um filme que marcou uma geração, o problema pode ser ainda maior. Em “A Fantástica Fábrica de Chocolate” (Charlie and the Chocolate Factory, EUA/Inglaterra, 2005), Tim Burton passa no teste com louvor. O cineasta de “Ed Wood” entrega não apenas um longa-metragem de apelo irresistível a crianças e adultos, mas também uma fábula sinistra e melancólica que remete diretamente aos trabalhos mais inspirados de sua carreira.
Visto de um ponto de vista estritamente racional, a versão cinematográfica de 2005 do famoso livro do galês Roald Dahl é superior ao filme feito em 1971. É evidente que cinéfilos que foram crianças nos anos 1970 terão dificuldades em comparar os dois produtos, uma vez que devem possuir uma relação afetiva especial com a obra-prima do diretor Mel Stuart. Mas o filme de Tim Burton vai mais longe, criando cenários deslumbrantes, de beleza plástica inigualável, e uma atmosfera ao mesmo tempo encantadora e sinistra. A obra exala fascínio infantil capaz de fazer adultos se sentirem crianças de novo, por alguns instantes. Além disso, o bom roteiro de John August leva a imaginação da platéia a um patamar que o longa de 1971 não conseguiu atingir. Em duas palavras: fidelidade e contexto.
São dois conceitos interligados. Tim Burton foi fiel não apenas ao filme antecessor, mas ao livro que inspirou as duas versões cinematográficas. E essa fidelidade se comprova justamente no contexto criado pelo diretor, que proporciona um passado para os personagens e, dessa forma, dá a eles motivações. Até mesmo pequenos personagens, como o vovô Joe (David Kelly) do protagonista Charlie Bucket (Freddie Highmore), saíram ganhando nesse processo. O velho inválido do primeiro filme virou, aqui, um dos operários desempregados pelo chocolateiro, quinze anos antes dos eventos mostrados em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”. Quando Willy Wonka fechou a fábrica a decretou demissão coletiva, também condenou a família de Charlie à pobreza.
O maior beneficiado pelo cuidado com os detalhes foi o sinistro chocolateiro Willy Wonka (Johnny Depp). Ele deixou de ser apenas um homem excêntrico de meia-idade para se tornar o traumatizado produto de uma família infeliz. Em uma série de flashbacks (sempre disparados pelos comentários argutos do pequeno Charlie), Wonka relembra como era uma criança solitária que desenvolveu um fascínio especial por doces devido à proibição absoluta do pai, um dentista (Christopher Lee), para que comesse açúcar. É interessante saber, também, que essa subtrama – que ocupa poucos minutos na tela – não existia no livro de Roald Dahl. O passado de Willy Wonka é a contribuição pessoal de Tim Burton ao filme, e também aquilo que transforma “A Fantástica Fábrica de Chocolate” em algo maior do que um mero projeto de estúdio: em uma obra de arte.
O paralelo é simples. De posse das informações certas, fica evidente que Willy Wonka é, na verdade, uma versão ficcional do próprio Tim Burton. Como o chocolateiro, Burton foi uma criança solitária que se afastou da família durante a adolescência. Como Willy Wonka, ele se esmerou em uma profissão diferente e se especializou em criar universos de fábula, ao mesmo tempo infantis e soturnos. Depois que teve um filho, Burton sentiu necessidade de analisar o próprio passado e fez as pazes com a memória do pai (já morto), algo celebrado no filme “Peixe Grande”. Em “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, ele aproveita os milhões de dólares da Warner para acertar as contas de vez com o passado e, de quebra, fazer um filme delicioso como o rio de chocolate que atravessa a fábrica de Willy Wonka.
Em linhas gerais, o longa-metragem narra a mesma história do filme de 1971. Após 15 anos produzindo os doces mais gostosos do mundo, sem que os habitantes da cidade onde a fábrica está localizada saibam quem de fato trabalha lá, Wonka decide abrir as portas do majestoso lugar por um dia. Mas apenas cinco sortudos que encontrarem cupons dourados escondidos dentro de barras de chocolate terão a chance de fazer a turnê pelo local.
Charlie Bucket, o garoto mais pobre da região, só come chocolate uma vez por ano, mas é fascinado pela fábrica – tem até uma miniatura da construção feita com tampas de tubos de pasta de dente – e acaba pondo as mãos em um dos cupons. Junto com mais quatro crianças, Charlie vai à excursão, onde Wonka distribui doces e punições para cada atitude errada dos meninos. Não seria errado fazer uma leitura em que Charlie é o segundo reflexo de Tim Burton dentro do filme, talvez como a criança que o diretor gostaria de ter sido: solitária, sim, mas altruísta, que entende os pais (e é entendida por eles).
O incrível visual de “A Fantástica Fábrica de Chocolate” é a marca mais visível da assinatura de Tim Burton. O diretor acertaa mão já na abertura, criando uma bizarra construção torta de um cômodo para a família de Charlie. O casebre parece uma homenagem ao clássico expressionista “O Gabinete do Dr. Caligari”, com suas portas e janelas tortas e seus ângulos estranhos. Se Burton já provoca fascínio com essa visão esquisita, imagine o que ele é capaz de fazer com os incríveis ambientes internos da fábrica, inclusive com uma floresta completa feita de doces (um lugar onde o rio, as árvores e até a grama podem ser comidos)?
Tim Burton não economizou para criar alguns dos cenários mais deslumbrantes que o cinema já viu. Em vez de fazer tudo digital, o cineasta optou por filmar nos gigantescos estúdios Pinewood, em Londres (onde Stanley Kubrick fez suas obras-primas), e construir todas as locações à moda antiga, com toneladas de chocolate derretido de verdade. O resultado é que os cenários não são apenas lindos, mas possuem textura. É quase possível sentir o cheiro de doce quando a câmera passeia e mergulha na paisagem colorida de bombons e pirulitos.
Burton também se esmerou na escalação do elenco. Johnny Depp, no quarto trabalho com o diretor, é um ótimo Willy Wonka. A performance e a caracterização têm sido muito comentadas, e dizem que ele se inspirou em Michael Jackson para fazer o chocolateiro. À parte a maquiagem facial, porém, o ator parece ter feito uma nova visitinha ao baú dos Rolling Stones. Se em “Piratas do Caribe” ele buscou inspiração em Keith Richards, aqui ele parece ter tirado o sobretudo de veludo, as luvas e a cartola (mais o corte de cabelo) do guarda-roupa do falecido Brian Jones. O sorriso sinistro e os gestos levemente exagerados compõem um todo perfeito. Junto a ele, some o rosto angelical de Freddie Highmore e a leveza do vovô Joe, e você tem um elenco sensacional.
Tem mais: o habitual colaborador de Tim Burton, Danny Elfman, faz uma trilha sonora encantadora, bem na linha “contos de fadas em negativo”. Ainda por cima, entrega cinco canções pop de ótimo nível para as engraçadas coreografias dos diminutos umpa-lumpas (aqui acertadamente mostrados não como anões, mas como homenzinhos com um quarto do tamanho de seres humanos normais). Sim, “A Fantástica Fábrica de Chocolate” tem momentos musicais, mas eles não são chatos ou modorrentos como nos antigos filmes da Disney. Repare no número dançado dentro da “sala da TV”, por exemplo, e tente não gargalhar. Você verá que é tarefa difícil!
Aqui e acolá, Tim Burton ainda encontra espaço para inserir referências e homenagens às influências mais importantes da própria carreira. Um ator ícone dos filmes de horror B, Christopher Lee, ganha participação especial importante (Vincent Price já aparecera em “Edward Mãos-de-Tesoura”, e Bela Lugosi foi retratado de forma afetuosa em “Ed Wood”). A seqüência completa da “sala da TV”, talvez a mais engraçada de todo o filme, faz piadas legais com os clássicos “2001 – Uma Odisséia no Espaço” (uma gag talvez deslocado do humor soturno do resto do filme) e “Psicose”. E a própria obra de Tim Burton ganha uma referência escondida: a primeira imagem de Johnny Depp no filme, que mostra o dia da inauguração da fábrica de chocolate, flagra Willy Wonka com uma tesoura na mão.
Esta é a imagem que liga de forma indelével “A Fantástica Fábrica de Chocolate” a “Edward Mãos-de-Tesoura”, a primeira obra-prima de Tim Burton, feita em 1990. Na verdade, os dois são filmes-irmãos, que poderiam se passar na mesma cidade. A paleta de cores, a atmosfera bizarra e melancólica, o misto de excentricidade, solidão e humor negro são características que os dois longas-metragens compartilham. O melhor de tudo é que “A Fantástica Fábrica de Chocolate” é filme infantil de verdade, que tem tudo para deixar crianças de 5 a 10 anos pulando nas cadeiras e sonhando com um reino feito inteiramente de doce. Aproveite: uma fantasia extasiante e duradoura como esta, em projetos de grandes estúdios, não acontece todos os dias.
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