
Matheus Nachtergaele estréia na direção
Marcelo Hessel/Omelete
Nos filmes do cineasta Cláudio Assis, como Amarelo Manga e Baixio das Bestas, homens agem e reagem como animais. Como bestas, enfim. Não por acaso, o ator Matheus Nachtergaele, que tem em Assis influência confessa, reproduz visão de mundo similar em A Festa da Menina Morta (2008).
Dá pra dizer que é uma obsessão até - jacaré de ventre aberto da beira do rio, galinha dependurada de pescoço cortado, tartaruga montando tartaruga, cabeça de porco afogada, cardume no esgoto, mariposas mil, não faltam animais no mundo dos homens do filme que marca a estréia de Nachtergaele na direção.
Mas há um elemento novo em relação ao pessimismo de um Baixio das Bestas: a religião. Há 20 anos, na pequena população ribeirinha do alto Amazonas em que se passa a história, o menino Santinho (Daniel de Oliveira) recebeu em suas mãos, da boca de um cachorro, os trapos do vestido de uma menina desaparecida. Ela jamais foi encontrada. O vestido virou coisa sagrada. E há 20 anos se celebra, então, a tal festa do título, quando a menina morta manifesta, por meio de Santinho, as revelações para o ano que virá.
Mais do que no lado irracional da fé, Nachtergaele está interessado na irracionalidade do rito: matam-se os bichos em nome da cerimônia, tudo é legitimado em nome da cerimônia. Os melhores momentos de A Festa da Menina Morta são aqueles que se detêm a observar como mesmo a mais trivial festa do interior, ainda que organizada com meticulosidade, com patrocinador e número musical, se dá a mitos e transes.
Nesses momentos, a direção de fotografia de Lula Carvalho deixa de emular ao extremo o esteticismo de seu pai, Walter Carvalho, com seus sofisticados enquadramentos e contraluzes, e parte para captar o que a realidade oferece. É possível imaginar Nachtergaele dizendo ao trio de break: "Façam aí o que vocês sabem, não se preocupem com marcação de cena". Nessas horas, há um bem-vindo senso de observação da cultura que cerca o culto, e não do culto em si.
O culto em si tem muito de encenado, particularmente dentro da casa, com personagens que caminham em direção à câmera e param no close-up para dar aquele berro que poderiam ter dado antes. Daniel de Oliveira interioriza e exterioriza a tragédia de Santinho com entrega exemplar, mas a mise-en-scène calculada em excesso - a câmera sempre se posicionando para pegar pessoas num ângulo "artístico" - sabota a construção do personagem.
Entende-se o exagero. Primeiro filme, há sempre um esteta dentro do diretor pedindo para sair. Nachtergaele ao menos demonstra aqui um olhar que vai além do niilismo, um olhar humilde, no sentido em que está atrás de compreender as coisas, não de impor sua posição a elas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário