segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A Noiva Cadáver



Tim Burton comprova fase inspirada com uma macabra (porém colorida) animação em stop-motion
Por: Rodrigo Carreiro

O segundo filme de Tim Burton lançado em 2005 é um tributo nostálgico aos primórdios do cineasta na indústria do entretenimento, quando ele trabalhava como animador para a Disney. “A Noiva-Cadáver” (Corpse Bride, Inglaterra, 2005) é uma animação de visual belíssimo, que resgata a velha técnica de stop-motion (já utilizada por Burton em “O Estranho Mundo de Jack”, que ele produziu em 1993) e a leva a um novo patamar. O filme, uma comédia musical, confirma a fase inspirada por que passa o norte-americano. Ele é o único diretor do cinema atual que consegue filmar contos soturnos de forma infantil e alegre, mas sem deixar de ser macabro – e esse é um elogio dos grandes.
A produção de US$ 40 milhões, considerada modesta para os padrões de Hollywood, se constitui em um feliz casamento entre superprodução e filme caseiro. Em termos de tempo e esforço, o filme é bem grande. Ao todo, os animadores tiveram que construir 34 cenários em miniaturas. Para cada um dos 20 personagens importantes, construíram nada menos do que 14 bonecos de aço e silicone. As filmagens duraram 55 semanas, em Londres. Cada equipe de animadores – uma por cenário – conseguia produzir em média quatro segundos de filme por semana.
A maior inovação técnica é o uso de máquinas fotográficas digitais para registrar o filme. Ao todo, foram batidas 109 mil fotos. Todo esse material foi animado com o uso de um programa caseiro de computadores, o Apple Final Cut. Ao contrário do que muitos pensam, Burton não esteve nos sets durante as filmagens. Enquanto dirigia “A Fantástica Fábrica de Chocolate”, ele se reunia diariamente com o co-diretor Mike Johnson para aprovar e supervisionar o andamento do trabalho. Em outras palavras, a produção de “A Noiva-Cadáver” foi muito diferente do que existe normalmente nos bastidores de um longa-metragem, e muita gente chegou a temer que a ausência física do diretor no dia-a-dia das filmagens pudesse ser prejudicial ao trabalho.
O resultado final dissipou esses medos, e isso em parte se deve ao caráter mais intimista com que Tim Burton conduziu o projeto. Ele se cercou de amigos e colaboradores de longa data, como Danny Elfman (trilha sonora) e John August (roteiro). Além disso, colocou boa parte do elenco do outro filme que fazia para gravar vozes de “A Noiva-Cadáver”, inclusive o amigo Johnny Depp e a esposa Helena Bonham Carter. A mistura de tudo isso gerou um filme cheio de energia e criatividade. Curto e engraçado, “A Noiva-Cadáver” apresenta as marcas registradas de Burton por toda parte, a começar pelo visual gótico-vitoriano dos filmes de horror B. Ainda por cima, corrige pequenos defeitos do antecessor de 1993, tendo menos cenas musicais, por exemplo, e portanto ritmo mais ágil.
O enredo do filme é baseado em uma lenda do folclore russo. Passa-se na Europa do século XIX, e conta a história de um rapaz rico, Victor Van Dort (Depp), que é obrigado a se casar com uma moça de ascendência nobre, mas cuja família está falida. O detalhe é que Victoria (Emily Watson) e Victor nunca se viram, até a véspera do casamento. Os dois são românticos de carteirinha e a empatia é imediata. O problema surge quando Victor, durante uma passeio noturno pela floresta local, põe a aliança no que pensa ser um galho de árvore que é, na verdade, o dedo descarnado de uma garota local, assassinada na véspera do casamento. A brincadeira desperta o defunto de Emily (Bonham Carter) e põe Victor numa torturante jornada entre duas dimensões, o mundo dos vivos e o dos mortos.
A concepção visual distinta dos dois mundos é um dos maiores trunfos de “A Noiva-Cadáver”. O diretor mostra os vivos em tons monocromáticos, cinzentos e melancólicos, quase sem vida; já o universo dos mortos é apresentado em cores explosivas, alegres e vibrantes, muito vivas. É uma inversão curiosa que ilustra bem a visão de mundo do diretor. O estonteante trabalho visual dos animadores cria personagens bem divertidos. O mais interessante deles é a minhoca que vive na cabeça de Emily e funciona como uma espécie de consciência, uma referência sutil ao grilo falante de “
Pinóquio”. Há também um barman cujo crânio é carregado por besouros, e esqueletos por toda a parte. Lá, no mundo dos mortos, Victor reencontra o cão de estimação da época quando era criança, obviamente agora um esqueleto canino (“Role! Finja-se de morto! Ops!”).
Um dos pontos que mais chama a atenção é o extraordinário trabalho de iluminação, pilotado pelo fotógrafo Pete Kozachik. Preste atenção, por exemplo, como a Noiva-Cadáver possui uma espécie de aura suave em torno dela, mais ou menos como as antigas donzelas da era de ouro em Hollywood eram retratadas (anos 1930/40). Para conseguir o efeito, Kozachik usou três fontes de luz, dispostas de modo a criar uma auréola de luz em volta do boneco, nas cenas com Emily. Ele fotografava as seqüências utilizando um filtro de difusão acoplado à câmera digital. O efeito obtido é uma espécie de atualização de um antigo truque dos fotógrafos das divas de Hollywood, que lambuzavam as lentes com vaselina antes de filmar as estrelas. Ficou sutil e muito bonito.
Além das peripécias visuais, o roteirista John August e Tim Burton providenciaram uma grande quantidade de referências a filmes e personagens do mundo do cinema. O piano que Victor e Emily dividem numa das melhores cenas na cidade dos mortos, por exemplo, é da marca Harryhausen, o sobrenome do maior de todos os mestres do stop-motion, Ray, responsável por muitos filmes nos anos 1950. O personagem do pastor, vivido pela voz cavernosa de Christopher Lee, usa um cajado e caminha encurvado, assim como o mago Saruman “O Senhor dos Anéis”, papel anterior do ícone dos filmes B de horror. O cão de estimação do protagonista lembra “O Estranho Mundo de Jack”. Um dos personagens declama romanticamente a célebre frase de encerramento de “
E o Vento Levou” (interessante notar que pouca gente na platéia percebe a referência). Há referências em profusão e de todos os tipos, para quem quiser procurar.
De nada adiantaria nada disso, contudo, se o texto não fosse bom – e as roteiristas Pamela Pettler e Caroline Thompson (o roteiro recebeu forma final pelas mãos de John August) entregam um texto seco e vigoroso, cheio de tiradas refinadas com o melhor do humor negro estilo britânico, ferino sem ser escrachado. Só como exemplo: em certo momento, Victoria questiona os pais sobre casamento sem amor. “E se eu e Victor não gostarmos um do outro?”. A mãe responde: “Como se isso tivesse a ver com casamento! Você acha que eu e seu pai nos gostamos?”, pergunta a senhora Everglot. “Um pouco”, murmura Victoria. “É claro que não!!”, grita Finnis, o pai.
“A Noiva-Cadáver” marca mais um ponto positivo na carreira de Tim Burton, e revela mais uma verdade fundamental no estilo personalista e exótico do criador. Sim, ele é apaixonado por visuais melodramáticos e macabros, mas filtra esse universo lúgubre com um olhar infantil inconfundível. Seus filmes abordam temas pesados, como a morte, com uma leveza e um senso de humor desconcertantes, o que torna filmes como este apropriados para pessoas de todas as idades. Ainda por cima, são raras as produções que deixam escapar, como “A Noiva-Cadáver”, o prazer revigorante do criador que vê suas criaturas ganharem vida. Quando esse prazer acaba por contaminar também o espectador, como aqui, o filme vira um organismo vivo. No mundo do cinema, poucas coisas são tão entusiasmantes como isso.

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