sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

35 Doses de Rumo


Claire Denis usa os trens que entram e saem de Paris para falar de relações de dependência
Marcelo Hessel/Omelete
Em uma cena de 35 Doses de Rum (35 Rhums), alunos de uma faculdade de antropologia de Paris discutem as relações que países de Primeiro Mundo mantêm com os emergentes, ex-colônias e viciados em FMI em geral. Fala-se em tratar o assunto de forma racional. Um deles questiona o "sistema".
O filme imediatamente corta para uma cena no controle de tráfego de trens da cidade, com um plano-detalhe do mapa do metrô. A mensagem é sutil: dentro desse tal "sistema", que poucos entendem mas muitos querem derrubar, o fluxo se dá sobre trilhos. Há quem pense que é de via única, mas todo trem que vai uma hora volta.
O protagonista, Lionel (Alex Descas), é um condutor de RER, o trem que serve a periferia de Paris. Sua filha, Joséphine (Mati Diop), aluna de antropologia, funcionária de uma filial da Virgin, mora com ele em um prédio fora da capital. São seus vizinhos a taxista Gabrielle (Nicole Dogue) e o misterioso Noé (Grégoire Colin), que vive em viagem e é o único desse grupo de pessoas que não tem ascendência negra. Os quatro mantêm proximidade informal (mantinham já desde os créditos de abertura, com os nomes do elenco reunidos), e esse núcleo está para ser rompido.
O roteiro escrito por Jean-Pol Fargeau e pela diretora do filme, a cultuada parisiense Claire Denis, não menciona mais política, abertamente, depois daquela cena da faculdade. Mas é evidente que tensões sociopolíticas permeiam 35 Doses de Rum o tempo inteiro, a começar pela própria escolha de filmar uma história periférica que pouco tem a ver com a imagem turística que se faz da França. Música africana, panelas de arroz japonesas, sopas jamaicanas... Em Paris e arredores o cosmopolitismo não é um capricho, mas uma realidade.
E essa análise de afetos que é 35 Doses de Rum volta aos poucos a falar de dependência. Conhecemos outro condutor de trem, que está se aposentando e não consegue tocar a vida. Vemos rotinas sempre em trânsito por vias pré-determinadas (o táxi, os RERs) e carros que, quando não estão cobertos por lonas há eras indeterminadas, ousam sair do roteiro ritual e quebram no meio do caminho.
O fato é que é muito fácil criticar a forma como se hierarquizam relações (de pessoas, de países), mas fica difícil explicar por que essas relações e essas dependências se estabelecem. Medo de solidão? Comodidade? Seria presunção de 35 Doses de Rum dar todas as respostas, e Claire Denis não tem essa ambição. Aliás, seu cinema tocante e a sua narrativa segura funcionam muito bem independente dessa interpretação de simbolismos feita aqui.

Nenhum comentário:

Postar um comentário