quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O Nevoeiro


Dinâmica entre os personagens é o ponto alto do filme de Frank Darabont, que compensa problemas gerados pelo estilo clássico com um final corajoso
Por: Rodrigo Carreiro

A primeira cena de “O Nevoeiro” (The Mist, EUA, 2007) mostra o protagonista da história trabalhando num estúdio de desenho, dentro da própria casa, enquanto uma tempestade faz barulho lá fora. David (Thomas Jane) cria pôsteres de filmes. Uma das pinturas mais destacadas que decoram o recinto é uma ilustração gigante de “O Enigma de Outro Mundo” (1982), de John Carpenter. Trata-se ao mesmo tempo de uma pista e de uma pequena homenagem, feita pelo diretor Frank Darabont, ao cineasta que inspirou o conto original de Stephen King. “O Nevoeiro” marca a terceira incursão de Darabont no universo macabro/fantástico do escritor. Uma marca especialmente significativa, se considerarmos que ele dirigiu uma única obra (“Cine Majestic”, de 2002) sem conexão com o trabalho de King.
Antes de funcionar como homenagem, porém, o pôster pretende sinalizar, aos espectadores que conhecem cinema, aquilo que está por vir. Sim, uma pista: a trama de “O Nevoeiro” é uma variação eficiente dos chamados “filmes de cerco”, aquelas claustrofóbicas narrativas cinematográficas que focalizam um grupo de pessoas preso dentro de um recinto e ameaçado por algo (ou alguém) mais poderoso, que está do lado de fora. O gênero foi criado pelo lendário diretor Howard Hawks, no faroeste “
Onde Começa o Inferno” (1959). Mais tarde, John Carpenter se tornou o maior de todos os especialistas neste tipo de filme, criando sucessivas variações deste tipo de narrativa. “O Nevoeiro” paga justo tributo ao cineasta norte-americano.
Não por acaso, o trabalho de Frank Darabont lembra bastante um outro filme de Carpenter: “A Névoa” (1980). Naquela película, uma misteriosa neblina espessa invadia uma pequena cidade de pescadores, trazendo junto a ela uma série de ocorrências inexplicáveis. A ação dramática de “O Nevoeiro” é mais simples, e acontece quase toda dentro de um supermercado, mas a idéia central é a mesma. Uma pequena e bucólica cidade rural do Maine (EUA) é invadida, após a já citada tempestade, por uma grossa neblina. A névoa não vem sozinha. Algo grande, barulhento e violento se esconde dentro dela. Isto acontece nos 10 primeiros minutos de projeção. Nas duas horas seguintes, passamos a acompanhar a tensão vivida por um grupo de moradores que foi apanhado pelo fenômeno meteorológico dentro do supermercado local.
Embora seja veterano em adaptar Stephen King, Darabont é neófito em filmes de horror (ele escolheu para filmar antes os contos dramáticos “Um Sonho de Liberdade” e “À Espera de um Milagre”), e isso fica evidente para qualquer um que acompanhe o gênero com atenção. Ele consegue injetar tensão à trama com eficiência, e faz isso através de um roteiro inteligente, sem precisar recorrer a clichês (como, por exemplo, escolher um par de personagens para protagonizar e deixar os demais em segundo plano). Ao invés disso, o diretor e roteirista cria grupos distintos de pessoas, cujas diferenças são amplificadas pouco a pouco pelo medo e pela tensão, de forma que os atritos vão se tornando maiores, chegando às raias da insanidade quando a situação realmente fica preta. O diretor dispensa a composição cuidadosa de personagens e se concentra na dinâmica que surge da interação entre eles. É uma maneira esperta e original de abordar uma velha situação dramática.
Darabont também consegue driblar com eficácia um problema trazido exatamente por essa abordagem. O problema é que, como quase toda a ação acontece dentro de um mesmo local, ela consiste basicamente de diálogos – conversas e mais conversas e mais conversas. Cineasta de estilo clássico e polido, Darabont filma tudo em grandes close ups (planos fechados aumentam a sensação de claustrofobia), usa a névoa e a escuridão de certos trechos para causar tensão, e tenta dar ritmo ao filme usando muitas tomadas com câmera móvel e cortes rápidos. Consegue um bom resultado, embora as tomadas em profundidade de foco falhem ao permitir que o espectador respire, algo que não condiz com o estado emocional dos personagens. Na primeira metade, o cineasta acerta em cheio ao esconder aquilo que se esconde na neblina. Quando o perigo ganha uma face, porém, a equipe de efeitos digitais não consegue ser 100% eficiente, de forma que algumas cenas parecem meio artificiais.
Outro dado positivo é que Darabont não cai na tentação de criar personagens típicos deste tipo do filme, fazendo com que os “heróis” (aspas são bem-vindas aqui, já que nenhum deles se encaixa realmente no conceito) sejam pessoas bem incomuns. Dois dos mais atuantes integrantes do grupo cercado, por exemplo, são o caixa nerd de meia idade do supermercado (Toby Jones) e uma agitada senhora na faixa dos 80 anos de idade (Francis Sternhagen). Em outros filmes, eles seriam coadjuvantes inofensivos, prontos para servirem de refeição para aquilo que há dentro do nevoeiro. Os três jovens soldados dentro do mercado, candidatos mais evidentes a heróis, acabam não virando nada disso. Como na vida real, os verdadeiros líderes são aqueles que surgem nas horas mais dramáticas, e nem sempre eles são aqueles de quem esperamos ações contundentes.
De resto, as virtudes de “O Nevoeiro” superam de longe os defeitos. O elenco não compromete – Thomas Jane é ator limitado, mas convence como pai pacato e cuidadoso – e tem pelo menos um grande destaque em Marcia Gay Harden. A vencedora do Oscar (“Pollock”) calibra uma performance cuidadosamente histriônica na pele da monstruosa Sra. Carmody, uma fanática religiosa que vê no incidente uma ocasião perfeita para pregar sua versão violenta, estilo “Velho Testamento”, da Bíblia. O diretor ainda teve tempo para alterar substancialmente o final escrito por Stephen King. Se o original já era forte, a versão para cinema transforma-o em uma espécie de piada cósmica inacreditavelmente sombria, que alguns poderão considerar de mau gosto. Um final corajoso e muito, muito original, com certeza.

Nenhum comentário:

Postar um comentário