quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Transamerica


Desempenho de gala de atriz eleva melodrama sobre transexual um degrau acima do convencional
Por: Rodrigo Carreiro

Um transexual descobre que tem um filho adolescente que não imaginava existir. A situação dramática, apresentada logo na abertura de “Transamerica” (EUA, 2005), é semelhante ao acontecimento-chave do elogiado melodrama espanhol “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), de Pedro Almodóvar. Embora sejam dois longas-metragens distintos, os filmes dividem mais do que a premissa básica: ambos são road movies comoventes, adotam toques cômicos com sobriedade, sem cair na extravagância ou no exagero kitsch, e garantem pontos extras através das boas performances dos atores. O filme de Duncan Tucker é inferior, mas tem um trunfo – as observações interessantes sobre sexualidade dentro de uma sociedade ultra-conservadora, como é o caso da norte-americana.
A idéia do roteiro de “Transamerica” surgiu, para o diretor, quando ele descobriu que a garota com quem dividia um apartamento há quatro meses era, na verdade, um homem. A partir daí, ele desenvolveu a saga de Bree (Felicity Huffman), nascida Stanley e travestida em Sabrina. A uma semana da ansiosamente aguardada operação para mudança de sexo, ela recebe um estranho telefonema informando que tem um filho adolescente chamado Toby (Kevin Zegers), e que o rapaz está detido em Nova York sob a acusação de prostituição. A notícia chocante muda tudo, pois a terapeuta (Elizabeth Peña) se recusa a autorizar a cirurgia, antes que Bree conheça o filho e recoloque a cabeça no lugar.
O transexual, que mora em Los Angeles, cruza os EUA a contragosto e paga a fiança do rapaz, que não tem para onde ir. Então, tem a idéia de voltar para casa de carro, junto com ele, imaginando poder deixá-lo com parentes. Detalhe: Bree não conta ao rapaz que é um homem, e muito menos que é o pai verdadeiro dele; inventa uma história bizarra sobre ser representante de uma igreja cuja missão é ajudá-lo. “Transamerica” é a história dessa viagem de dois outsiders sexuais, cruzando os Estados Unidos num carro caindo aos pedaços. Em outras palavras, um road movie transexual.
Em termos de estrutura, “Transamerica” é um melodrama absolutamente comum, até mesmo previsível. Logo no início da jornada, por exemplo, a platéia já sabe que em algum momento da viagem Toby descobrirá a verdade sobre Bree – resta saber como e quando isso acontecerá. A boa notícia é que Duncan Tucker jamais cede à tentação de arruinar a história, transformando o filme em uma comédia superficial e preconceituosa sobre gays, ou em um dramalhão lacrimoso sobre o reencontro de pai e filho. O foco de “Transamerica” está na mudança sutil que cada personagens (especialmente Bree) experimenta ao tomar
contato com o outro, e esse é o maior acerto do diretor.
A composição do transexual é detalhista e rica de significados. A atriz Felicity Huffman (mais conhecida pelos trabalhos na TV e esposa, na vida real, de William H. Macy, ator de “Fargo” e “
Magnólia”) aproveita a chance e oferece um desempenho memorável, encantador, sem nunca cair na caricatura. Na realidade, o maior acerto é que Huffman compreendeu a natureza dos transexuais, caracterizando Bree não como um gay afetado, mas como uma verdadeira mulher angustiada, que tem “nojo” do próprio pênis e se sente presa no corpo de um homem.
De fato, a Medicina diz que a classificação de “homossexual” é incorreta para alguém como Bree, pois o problema tem reconhecidamente uma causa genética. Mesmo assim, “Transamerica” segue no rumo certo porque, ao contrário da maioria dos filmes de Hollywood, não trata a questão com superficialidade ou preconceito. Assim, sexo é algo que parece não fazer parte da vida de Bree (“eu não sou um travesti”). Perceba que, durante todo o filme, ele (a) jamais demonstra interesse de ordem sexual por qualquer outro personagem, mesmo quando durante a viagem surge uma empatia natural com um trabalhador índio que lhe dá carona (Graham Greene). Essa empatia não tem raiz sexual.
Além disso, a atriz se beneficia da personalidade construída para o personagem, pois é conservador e antiquado – observe os terninhos e lenços que ela usa, que parecem ter saído do figurino de um filme de Greta Garbo – e entra em choque com os hábitos liberais de Toby, um rapaz que possui, ele mesmo, uma sexualidade ainda em formação, e certamente conflituosa. Herança do pai, talvez? Ou questão relacionada à falta de um lar verdadeiro durante a infância? O filme não afirma, o que está correto – qualquer resposta para essas perguntas seria mera especulação.
Um dos aspectos mais interessantes de “Transamerica” está na caracterização sutil, mas firme, do conservadorismo da sociedade norte-americana. Como mergulhamos no universo de Bree por um período, podemos perceber claramente que o transexual freqüenta círculos sempre à margem da sociedade. Ela trabalha num restaurante mexicano, tem uma terapeuta portenha, seu único interesse amoroso visível é um trabalhador índio, e a própria família – a mãe perua (Fionnula Flanagan), o pai submisso (Burt Young) e a irmã arredia (Carrie Presto) – é, apesar de ter um padrão de vida confortável, claramente outsider.
A sugestão é evidente: a classe média WASP (brancos, anglo-saxões e protestantes) não aceita bem pessoas como eles, tolerando-os em um mundo à parte, como que escondendo a “sujeira” para baixo do tapete ao escorraçar essas pessoas para a periferia (palavra usada aqui não num sentido geográfico, mas social). Em termos cinematográficos, “Transamerica” é um filme um degrau acima do melodrama convencional, graças a uma performance arrebatadora de Felicity Huffman e a um roteiro que evita estereótipos.

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