
Produção independente de Dennis Hopper rachou Hollywood ao meio como uma hecatombe nuclear
Por: Rodrigo Carreiro
A intenção inicial era apenas fazer mais um filme de motoqueiros, subgênero cinematográfico barato muito popular nos Estados Unidos do final da década de 1960. Um bate-papo regado a maconha e LSD sedimentou a idéia: Peter Fonda produziria, Dennis Hopper dirigiria, e ambos escreveriam e estrelariam a película, financiada com ridículos US$ 350 mil pela produtora independente BBS. Ninguém poderia imaginar que “Sem Destino” (Easy Rider, EUA, 1969), fruto dos delírios da dupla de pirados, explodiria Hollywood com o potencial de uma hecatombe nuclear, abrindo espaço para uma nova geração de cineastas (Francis Ford Coppola, Martin Scorsese) e mandando muitos veteranos para a aposentadoria compulsória.
De fato, nem mesmo as pessoas mais chegadas a Hopper e Fonda acreditavam no projeto. Até mesmo Peter, filho do astro Henry Fonda e apaixonado por motos, tinha dúvidas de que o filme um dia sairia do papel, por causa do notório temperamento explosivo, quase paranóico, de Dennis Hopper. A BBS só concordou com o financiamento porque sabia que um filme de motoqueiros, por pior que fosse, atrairia as gangues vestidas de couro negro que cruzavam as estradas dos EUA naquele tempo, e faturaria pelo menos o dobro do que estava sendo gasto. Era um filme independente, sem qualquer ligação com um grande estúdio.
Hopper começou a filmar sem roteiro, com uma equipe em grande parte formada por amadores. Ele tinha direito por contrato à montagem final, e usou esta liberdade para quebrar todas as regras que desejava. Isto significou, por exemplo, filmar cenas em formato amador de 16 mm (toda a parte final, que se passa em Nova Orleans) e abandonar pelo caminho várias convenções técnicas vigentes na época, como jamais filmar contra a luz do sol, o que causava reflexos lente da câmera. A história era mero pretexto para intermináveis seqüências que mostravam os protagonistas dirigindo pelas paisagens idílicas dos EUA: uma dupla de motoqueiros (Hopper e Fonda, claro) vende um carregamento de cocaína e, com o dinheiro, cruza o país de oeste a leste, para ver o Mardi Gras (festa conhecida como o Carnaval dos Estados Unidos) em Nova Orleans.
Inspirado no despojamento técnico dos filmes da Nouvelle Vague francesa (sobretudo “Acossado”, de Jean-Luc Godard, e “Jules e Jim”, de François Truffaut), “Sem Destino” inaugurou o conceito de road movie. Foi o primeiro filme norte-americano a usar como protagonistas dois anti-heróis – Wyatt (Fonda) e Billy (Hopper) são traficantes – e a exibir a nudez feminina sem o menor traço de pudor, além de mostrar quase todos os personagens usando drogas como quem toma café da manhã, e incluir seqüências lisérgicas que simulavam o efeito do LSD. Acima de tudo, “Sem Destino” expôs claramente o abismo cultural que rachava os EUA, com uma juventude urbana e chapada que não tinha qualquer relação de valores conservadores do meio-oeste (a melhor cena do filme mostra os motoqueiros sendo fustigados gratuitamente por um grupo de locais numa lanchonete caipira).
Como filme, “Sem Destino” é um tanto irregular, excedendo-se nas passagens que mostram a dupla na estrada e encurtando quase todas as cenas com diálogos. A importância do filme está nas conseqüências que ele provocou em Hollywood, após o tremendo sucesso de público (US$ 17 milhões arrecadados nas bilheterias, uma fortuna para a época) e crítica (Hopper venceu o prêmio de melhor diretor novato no Festival de Cannes e passou a ser venerado como um Deus). Depois dele, todos os estúdios demitiram executivos de meia-idade e firmaram contratos com produtoras independentes para a produção de filmes de baixo orçamento, dando-lhes liberdade para empregar jovens diretores com talentos.
Foi a partir de “Sem Destino” que a figura do produtor, como principal mente por trás da concepção de um filme, passou a ser substituída pela imagem do diretor-artista. Não é pouca coisa. E a fabulosa seqüência de créditos inicial, com as motocicletas na estrada ao som do poderoso hino rocker “Born to be Wild”, da banda Steppenwolf, transformou-se em símbolo icônico da liberdade de ser jovem – assista aos 20 e poucos anos e tente resistir à vontade de sair, você mesmo, riscando o asfalto em alta velocidade, sentido o vento soprar no rosto.
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