
Comédia leve e humana é verdadeiro estudo sobre vulnerabilidade e carência em homens de meia-idade
Por: Rodrigo Carreiro
Oficialmente, “Sideways” (EUA/Hungria, 2004), que no Brasil ganhou o pavoroso subtítulo “Entre Umas e Outras”, é um filme que narra a viagem de dois amigos pelas fazendas vinícolas da Califórnia, como despedida de solteiro de um deles. A verdade é que o quarto longa-metragem do cineasta Alexander Payne (de “As Confissões de Schmidt”) vai muito além de narrar uma breve e inconseqüente temporada de desbunde alcoólico. A viagem de carro é mero pretexto para o cineasta tecer uma comovente e engraçada história sobre carência afetiva em pessoas que se aproximam da meia-idade.
Para fazer isso, Payne criou um quarteto de personagens que beira os 40 anos, todos envolvidos em fracassos pessoais e profissionais, e tentando lidar com a questão do envelhecimento, enquanto seguem adiante com suas vidas medíocres. Com metáforas inesperadas e personagens perfeitos, Payne constrói uma pequena jóia, desde já séria candidata a clássico cult.
Na verdade, o roteiro escrito pelo diretor e por Jim Taylor transcende os ensinamentos lidos nas dezenas de manuais de roteiros que circulam em Hollywood. Esses livros costumam dizer que há duas maneiras de escrever bons roteiros. A mais comum é criar uma situação de conflito e, depois, desenvolver os personagens em função dela. A outra, mais rara, manda criar antes os personagens e, depois, envolvê-los em uma trama. Na opção A, personagens são subordinados à trama; no item B, ocorre o contrário. “Sideways” consegue a proeza de criar um equilíbrio entre os dois componentes do roteiro. O filme tem personagens profundos e densos, que se entrelaçam em uma trama humana de toques cômicos, mas repleta de pequenas metáforas sobre a vida. Tudo isso de forma levemente melancólica.
Tudo começa em uma sexta-feira. Miles (Paul Giamatti) é o professor de ginásio e aspirante a escritor que organiza uma viagem de uma semana para comemorar o casamento do melhor amigo, Jack (Thomas Haden Church), um ator e dublador de TV. Ambos estão na casa dos 30 e poucos anos. A grande paixão da vida de Miles são os vinhos; por isso, ele decide que a semana de folga será passada nas vinícolas do sul da Califórnia, região famosa pela produção de bebidas de boa qualidade. Miles deseja ensinar a Jack alguns ensinamentos que considera básicos para que se possa apreciar um bom vinho.
O vinho, a rigor, tem sido o refúgio de Miles desde o divórcio, dois anos antes. Sem sorte no amor, ele aguarda mais sorte no trabalho, pois acaba de escrever o terceiro romance, depois de ter duas novelas rejeitadas por todas as grandes editoras dos EUA. A separação lhe deixou um enorme trauma, quase do tamanho de sua baixa auto-estima. Ele toma calmantes, e parece ter perdido a confiança de fazer a corte de mulheres bonitas, mesmo quando elas demonstram claramente que também estão interessadas.
Jack é quase o oposto. Ele lembra o personagem Joey, do seriado “Friends”. Jack é um ator medíocre, que trabalha fazendo comerciais e pontas em séries de TV. Seu vinho são as mulheres. É louco por elas. Essa característica é amplificada pela proximidade do casamento, que desperta em Jack um verdadeiro pavor da responsabilidade. Ele reage a isso de maneira meio histérica, enlouquecida, passando a tentar dormir com todas as mulheres que passam pela frente. Algo fácil de acontecer em uma despedida de solteiro, certo?
No primeiro café da manhã que dividem durante a viagem, o assunto do papo gira em torno de mulheres e bons vinhos. Os dois, portanto, têm objetivos bem distintos na viagem. Jack quer ir para a cama com tantas garotas quanto puder, e se possível arrumar uma namorada para o parceiro. Miles deseja apenas experimentar o maior número possível de bons vinhos, e ensinar ao colega uma coisinha ou outra sobre a bebida.
Em circunstâncias casuais, eles acabam conhecendo mesmo duas mulheres. Maya (Virginia Madsen) trabalha como garçonete, enquanto completa um mestrado em Horticultura. É conhecedora de vinhos, como Miles, e sonha em trabalhar numa vinícola. Stephanie (Sandra Oh) atende experts em vinhos em uma dessas fazendas. O diretor Alexander Payne leva um longo tempo estabelecendo a psicologia de cada personagem, mas faz isso com destreza, fazendo a ação se desenrolar tranqüilamente, em ritmo leve, quase casual. As duas garotas vão acompanhar os dois amigos em parte da viagem. Falar mais do que isso seria revelar demais sobre o filme.
Embora seja uma história de quatro pessoas, “Sideways” é sobre Miles. O filme começa com ele, termina com ele, e tem a participação do sujeito em todas as cenas. Mas a narrativa não adota o ponto de vista do aspirante a escritor; ela invade a intimidade dele, acompanhando-o nos momentos mais embaraçantes, e continuando lá em todas as horas, sejam engraçadas, trágicas ou rotineiras. A direção de Payne é discreta e eficiente, imprindo ao longa um ritmo jovial, o que permite que a projeção atravesse alguns momentos barra-pesada sem que a história perca um leve tom de comédia.
Para um filme assim funcionar, bons atores são fundamentais, e “Sideways” tem seus grandes trunfos nessa área. Haden Church faz um Jack magnífico, uma espécie de adolescente crescido, obcecado por sexo (a mania rende uma seqüência hilariante, perto do final, que soa um pouco deslocada do humor mais elegante do resto do filme). Sandra Oh, que tem o personagem menos explorado pelo roteiro, não decepciona. Já Virginia Madsen, intérprete de Maya, e Paul Giamatti, o mau-humorado Miles, estão simplesmente sensacionais. Os dois dividem uma das seqüências românticas mais belas e românticas dos últimos anos.
A cena acontece durante a primeira noite em que o casal sai junto. Decepcionado por ter descoberto naquele mesmo dia que a ex-mulher tinha casado novamente, Miles bebe além da conta. Isso só aumenta o desconforto dele diante da situação: eles paqueram, ela está acessível, mas ele perdeu o jeito de lidar com a situação, que se transforma em embaraçosa. Maya tenta quebrar o gelo conversando sobre vinhos. Ela pergunta porque ele prefere os vinhos produzidos com uvas Pinot Noir. Ele inicia uma reflexão quase filosófica até que, em certo momento, Maya percebe (e a platéia também) que Miles não está falando sobre vinhos, mas sobre si mesmo. Assim, quando ele devolve a pergunta, ela responde usando o mesmo código. É uma cena tocante, belíssima, suave e extremamente romântica, que termina da maneira mais honesta e real possível.
“Sideways” é um triunfo do cinema independente, um filme que discorre longamente sobre um assunto difícil e elitista – os vinhos, é claro – sem jamais se tornar chato, modorrento ou arrogante. Não se preocupe: você pode não entender nada de vinhos, como eu, e amar “Sideways” do fundo do coração, porque os vinhos representam, em uma escala maior, a mesma metáfora para o espectador que representam para Miles: a vida. No final das contas, o road movie etílico vira uma comédia sóbria (sem trocadilhos) e elegante, despretensiosa e profunda, um verdadeiro estudo sobre a vulnerabilidade e a carência que todos nós, seres humanos, compartilhamos no dia-a-dia. Maravilha de filme.
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